Recebi há duas semanas das mãos da professora e escritora Regina Bastianini um exemplar do livro ‘Tiada e Isaurinha’, em cuja capa de tom rosa o nome do escritor aparece no alto, em azul-marinho: Manoel Ilson Cordeiro Rocha. Alguma dúvida em meu olhar quanto ao título suscitou na confreira da AFL uma observação: ‘Tiada e Isaurinha são os pais do autor.’ Mas foi o nome Tiada desmembrado do par que ficou buscando arquivos na minha memória, até que algum tempo depois me atualizou o livro homônimo que eu havia lido há três anos e resenhei aqui.
‘Tiada’ me surpreendeu desde o início porque no que se refere à forma difere de tudo o que eu já li na minha longa trajetória de alfabetizada: nele o autor faz opção radical pelo diálogo. Assim, o que a vista captura primeiro em cada página são os sinais gráficos dos travessões, usados com parcimônia no romance desde que o gênero foi inaugurado por Cervantes no século XVII. Pelo que me consta, a narração, seguida pela descrição, sempre foi o modo da ficção por excelência. Ainda não havia me deparado com algo parecido à escrita de ‘Tiada’ e logo nas primeiras páginas imaginei que pelo andar da carruagem não encontraria um narrador.
Quanto aos personagens, perfilados pela fala e reunidos sob o signo das relações familiares ou amistosas, geraram alguma confusão em minha mente. Várias vezes tive de voltar linhas para me situar na narrativa. Sim, havia uma narrativa, configurada pelo trânsito de homens e mulheres por lugares cuja geografia e costumes se mostravam como sendo os do Sertão, os Gerais, a Caatinga. O final da história pertencia ao tipo obra aberta, sem um definitivo porto onde ancorar gentes e histórias. Relembrando o livro à distância, avalio hoje que a repetição intencional de frases e situações pretendeu, entre outras coisas, traduzir a sobriedade dos costumes e a concisão da linguagem de uma cultura que inspirou outros escritores brasileiros.
Com tais ilações percorri as primeiras páginas de ‘Tiada e Isaurinha’ e reencontrei a mesma estrutura de ‘Tiada’. Ali estavam os conhecidos sinais gráficos e por instantes acreditei que o livro seria a continuação de um enredo que sentira inconcluso no passado e poderia responder agora à minha curiosidade. Enganei-me, porque embora o livro anterior seja referenciado já nas primeiras linhas do atual, e motivo subjacente em grande parte do volume, a história repousa mais em ideias e conceitos que em fatos e acontecimentos. Apesar do índice da Ribeirão Gráfica Editora catalogar o livro como ‘ficção brasileira’, em vários momentos a obra me lembrou um talk show nos moldes dos apresentados por Jô Soares e Marília Gabriela na década de noventa. Uma forma de "conversação textual", com seu sistema de perguntas e respostas inteligentes, pertinentes, às vezes com toques de humor, expressando a argúcia do entrevistador e a expertise do entrevistado. Recorto dois trechos onde os interlocutores expõem seus pensamentos. O primeiro, na página 63, é sobre literatura:
"- Vai mesmo escrever com metalinguagem?
O segundo, na página 95, versa sobre consumismo:
“(...) Mas você costuma relacionar cidadania pós-moderna com sociedade de consumo. O caminho não é por aí? Porque ocorreu uma explosão de consumo, é o que pode servir para integrar as pessoas pelo mundo...
- Vamos com cautela por aí. De fato, vivemos numa sociedade de consumo e a emancipação do indivíduo passa naturalmente pela capacidade de consumir. Mas o consumo é uma ação individual e o seu extremo é uma forma de egoísmo.”
Para melhor entendimento do leitor, faço aqui uma síntese. Um escritor recebe em sua casa amigo de longa data, na faixa etária da ‘meia idade’, como se definem ambos. Eles trocam ideias sobre arte, filosofia, política, ideologias, modernidade e pós-modernidade, gerações, autores, compositores, música e principalmente escrita literária. A conversação é entremeada por cerveja, alguns quitutes simples, jogo de cartas, telefonema, menção a uma mulher que é esperada mas não chega, lembranças de amigos comuns etc. Tais elementos funcionam como pausas ou respiros breves que trazem à tona a vida cotidiana e assim amenizam o diálogo intelectual em que os dois se embrenham.
Recorrentes no livro sem divisão em capítulos encontram-se opiniões sobre os erros e acertos de ‘Tiada’ e o projeto de uma nova obra que está sendo escrita e no final o leitor descobre ser o livro que tem em mãos. Como cada leitor lê um livro carregando consigo todos os outros livros já lidos, não pude deixar de pensar em Proust no último volume de ‘Em busca do tempo perdido’, chamado ‘O tempo reencontrado”. Num insight comovente, Marcel, o protagonista, descobre nas últimas páginas que o grande livro que planejava escrever já está escrito.
É importante valorizar o ineditismo formal do escritor e a maneira como respondeu à proposta de criar dois protagonistas: o autor que expressa suas inquietações e o ‘amigo especial’ que responde a elas concordando ou divergindo. Não é fácil operar esse exercício de tese e antítese. E é importante também reconhecer que se o livro ‘Tiada e Isaurinha’ não representa um modelo de ficção construída em moldes tradicionais, com certeza é instigante: ele desafia o leitor o tempo todo.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.