20 de dezembro de 2024
OPINIÃO

O silêncio que fica: nossa peculiar família agora é só de três

Por Denise Silva | Especial para a Sampi
| Tempo de leitura: 5 min
Arquivo pessoal
Matilda, Bebê e Guga

Há uns 15 anos meu pai passou por um sério problema de saúde e minha mãe passou uma fase só pensava em coisas ruins. Tive uma ideia para dar mais o que ela pensar e adotei uma pintcher - para ela. Eu sei, dar cachorro de presente é uma ideia muito arriscada, mas no meu caso, deu certo. A Magg, que depois da minha mãe só chamá-la de Bebê, acabou se tornando a Bê para os íntimos, animou a casa. Mesmo filhote era uma idosa.

Eu ainda morava com os meus pais e, apesar da Bê ter escolhido minha mãe pra ser a “sua pessoa”, era atrás de mim que ela ficava o tempo todo que podia. Alguns anos depois, ganhei a Matilda, uma border collie 100% energia e 0% noção. A Matilda chegou pra virar a vida da Bê de ponta cabeça. Fazia bagunça, derrubava a água toda, puxava as caminhas. Uma senhora de alma, acostumada a viver a vida devagar, nunca disfarçou seus olhares de irritação e a tentativa de manter a ordem com seus latidos finos estridentes.

Depois, quando fui morar sozinha, a Bê - apesar de disfarçar muito bem - se entristeceu sem a confusão matildesca e foi junto com a gente. Comecei a namorar e no pacote de mudança de vida veio junto com a minha namorada mais um: o Guga. Também um senhor, do alto dos seus 6 anos, gostava de viver sem dar muita conta para o resto do mundo. Autossuficiente, independente, imagina só o horror ter que passar a conviver com uma pintcher petulante e uma border incansável, sem noção de espaços pessoais?

Não é que a mistura acabou dando certo? A Bê era a prefeita. Era dela a melhor cama, a preferência na hora de comer e a organização das brincadeiras. O altivo Guga aprendeu a brincar e a Matilda a respeitar um pouco mais o tempo e a limitação física dos irmãos.

Caminhávamos quase todo dia, brincávamos de graveto, de bolinha, de petiscos escondidos pela casa. Nosso passeio preferido era ir pra cachoeira. Matilda doida na frente, Guga cuidadosamente atrás, atento para se molhar o mínimo possível e a Bê na mochila - pernas curtas já não são fáceis, no mato, na água e atrás de dois irmãos bem maiores, o jeito era ir segura no colo ou na mochila acompanhando tudo em segurança do alto.

Quando eu menos esperava e sem perceber, me tornei “a mulher dos cachorros”. Onde ia, tinha três me seguindo… Era péssimo - e ótimo.

Eu entendo quando muita gente diz que bicho não é gente, que somos nós que personificamos os animais. Mas quem tem, sabe que não é o que acontece. Dentro da nossa cabeça, cada um tem uma voz, expressões particulares, gostos, jeitos de mostrar felicidade, desconforto e é muito fácil ver a personalidade de cada um deles.

Mas aí a vida acontece. 
Um dia, quando estava trabalhando fora, a Bê foi atacada por um cachorro na rua e não resistiu. Eles estavam sob os cuidados da minha namorada e, para ela, foi devastador perder a Bê enquanto eu estava fora. Demorei ainda três dias para voltar e, quando cheguei, tive que segurar o que sentia para não piorar o desespero da minha namorada. A Bê já tinha 14 anos, mas não morreu de velhice e essa é uma tristeza difícil de explicar. Foi um luto silencioso, constrito.

Enquanto a vida continuava, o Guga começou a dar sinais da velhice. O fígado ficou mal, a coluna não era mais a mesma, os pelos brancos tomavam cada vez mais o lugar dos pretos brilhantes e alguns dentes se foram pela jornada. Na última terça-feira, caminhamos, ele comeu, brincou, tomou um banho, deitou-se em um cantinho no sol, como fazia sempre, e se foi. Assim, em segundos. Sem dar nenhum sinal de que seria aquele nosso último dia.
Diferentemente de quando aconteceu com a Bê, deixamos a Matilda ver o corpo do irmão e participar do sepultamento.

Ela entendeu. E isso é de partir o coração.

Eu nem sei o que dizer pra minha namorada. Ela e Guga viviam colados desde quando ele foi resgatado às margens de uma estrada, todo estropiado ainda filhote. Foi para cuidar dele que ela decidiu voltar a Franca depois de um tempo vivendo em São Paulo. Marília e Guga eram quase uma marca. Estavam juntos em protestos, eventos culturais, incontáveis viagens e até fizeram campanha para prefeitura. Para o Guga, a Marília era só o que precisava existir - a gente era só um anexo. Se para mim está difícil, nem imagino para ela.

Nossos cachorros estavam conosco o tempo todo. Não viviam só presos no quintal. Uma mistura de protetores, companheiros, amigos e filhos. Porque cachorro não vira adulto e sai de casa pra ir pra faculdade. Eles são crianças para sempre. Mesmo a Bê que nasceu com alma de velha, sempre foi uma bebê. O Guga, mesmo independente, era uma criança. E agora, acabou mais um ciclo da nossa história também.

Éramos cinco e agora somos só três. Eu sei que vamos atravessar esse silêncio que tomou conta da casa, que em alguns dias minha namorada vai conseguir voltar a sorrir e que a Matilda vai recuperar a energia. Mas a saudade… essa eu não sei se um dia vai passar.

Agora eu entendo quem diz que nunca mais vai ter cachorros depois de perder um. Pensar que um dia a Matilda também se vai, por agora, é um pensamento insuportável.

Mas, sabe uma coisa? As memórias que tenho, as risadas, os passeios… mesmo essa tristeza, que parece uma névoa que dominou a gente agora, nunca vai chegar perto da felicidade que vivemos. Eu faria tudo outra vez.

Denise Silva é jornalista e diretora de operações da Sampi