24 de dezembro de 2024
NOSSAS LETRAS

O Prefeito Escritor

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 7 min
Reprodução

Caetés, Angústia, São Bernardo, Vidas Secas, Memórias do Cárcere, Infância são alguns dos títulos que tornaram imortal a obra de Graciliano Ramos, cujos 132 anos de nascimento foram lembrados no último 27 de outubro com o relançamento pela Editora Record do livro ‘O Prefeito Escritor: dois retratos de uma administração’. Muito oportuna no mês em que o Brasil elegeu prefeitos e vereadores nos seus 5570 municípios, a publicação de 152 páginas mostra que a excelência do escritor foi além dos limites da literatura. Ele se distinguiu também como político ao provocar uma revolução em Palmeira dos Índios, cidade do Agreste alagoano que o elegeu prefeito em 1928 com 433 votos. Sem fazer comício, promessas ou composições políticas para a escolha dos vereadores, então chamados conselheiros municipais. 

Tendo herdado uma prefeitura falida, Graciliano Ramos, então com 36 anos, percebeu que necessitava pôr ordem na casa com urgência. E tomou medidas corajosas e ousadas, como relata o jornalista Dênis Moraes em texto-reportagem produzido depois de ter visitado a cidade nordestina em 2011, em busca de documentação que comprovasse o que já se sabia:

 “Ele instruiu os fiscais a cobrar os impostos com rigor. As dívidas atrasadas teriam de ser pagas imediatamente, sob pena de execução judicial. E as isenções fiscais, que beneficiavam grandes proprietários, comerciantes abastados e chefes políticos, perderam validade. Passou a controlar com mão de ferro o registro geral de despesas da Prefeitura, tendo como critério básico não gastar mais do que se arrecadava. Ele próprio anotava, à tinta, a finalidade do gasto, a quantia paga e o nome do beneficiado – como se pode constatar no livro contábil exposto na Casa Museu Graciliano Ramos, em Palmeira dos Índios.”

Outro documento aponta que um de seus primeiros passos foi buscar a aprovação pelo Conselho Municipal de um Código de Posturas, marco civilizatório para um município de dez mil habitantes cuja população, como tantas outras da região, assistia impotente ao poder das oligarquias massacrando o interesse coletivo e ignorando as normas vigentes. Ainda que sua atitude o desgastasse junto aos grupos políticos dominantes, Graciliano não se amedrontou e fez cumprir a lei. Segundo o mesmo Dênis Moraes, “as medidas previstas no Código regulamentavam direitos e deveres dos cidadãos e do poder público. Eis alguns: animais não poderiam andar soltos nas ruas; os comerciantes eram impedidos de açambarcar mercadorias de primeira necessidade em época de carestia; os farmacêuticos, proibidos de vender determinados remédios sem receita médica; os hoteleiros, obrigados a ter em ordem o livro de hóspedes e a afixar a tabela de preços em locais visíveis; o comércio não poderia funcionar além das 21 horas nem abrir aos feriados e fins de semana; açougueiros não poderiam vender carne de rês doente e teriam de passar a recolher impostos. O Código estabelecia advertências e, em caso de reincidência, pesadas multas aos infratores(...) Graciliano determinou a limpeza de ruas e logradouros públicos, onde proliferavam animais vadios, lixo acumulado, lama e detritos. Os donos de cães e porcos, acostumados a deixá-los à solta, tomaram um susto quando os animais começaram a ser recolhidos (...) Ao saber que Sebastião Ramos não acatara a ordem, mandou o fiscal multá-lo. Magoado, o pai teve de ouvir uma admoestação:– ‘Prefeito não tem pai. Eu posso pagar sua multa. Mas terei de apreender seus animais toda vez que o senhor os deixar na rua.”

Em dois anos Graciliano Ramos saneou as finanças; construiu três escolas; abriu um posto de saúde; instalou um abatedouro; aterrou área alagadiça facilitando a locomoção da periferia ao centro; convocou presos para trabalhar na estrada de oito metros de largura e trinta quilômetros de comprimento ligando o município a Palmeira de Fora.  Emudeceu a oposição ao mostrar em números que enquanto o Estado gastava, por quilômetro construído, quatro contos de réis, ele fazia o mesmo investindo apenas a metade.

O caráter decidido, a disposição para o trabalho, a proverbial honradez e a abertura ao diálogo o credenciavam positivamente junto à população pobre, que simpatizava com seu modo de administrar. Mas é claro que em uma cidade de perfil reacionário tais ações despertariam respostas agressivas da parte dos que viam seus interesses contrariados. Cartas anônimas com ameaças eram com frequência encontradas embaixo da porta da loja Sincera, propriedade de Graciliano, que escrevendo à sua mulher se queixava: “Para os cargos de administração municipal escolhem de preferência os imbecis e os gatunos. Eu, que não sou gatuno, que tenho na cabeça uns parafusos de menos, mas não sou imbecil, não dou para o ofício e qualquer dia renuncio”.

Isso aconteceu de fato em abril de 1930. Depois de modernizar a cidade, colocar fim à corrupção, desbancar o clientelismo, cortar privilégios da elite, direcionar investimentos para áreas mais pobres e abrir as portas da prefeitura para todos, Graciliano Ramos deixou Palmeira dos Índios. Aceitou o convite do governador Álvaro Paes para assumir a direção da Imprensa Oficial do Estado, em Maceió e, posteriormente, para a Secretaria de Instrução Pública. Paes havia ficado impressionado com a austeridade revelada nos relatórios de prestação de contas que o prefeito havia lhe enviado.

Mas foi pelo estilo inusitado, contrário à burocracia usual, que o primeiro relatório, publicado como de praxe no Diário Oficial, causou sensação nos jornais do Nordeste e do Rio de Janeiro. O segundo, também matéria na imprensa de Maceió e do Rio, apareceu no DO com uma mensagem de louvor do governador: “A administração de Palmeira dos Índios continua a oferecer um exemplo de trabalho e honestidade, que coloca o município em uma situação de destaque”.

A jornalista Amanda Calazans, em artigo publicado recentemente no Estadão sob título ‘Os munícipes que não reclamam’, comenta a excelência dos documentos reunidos em livro e destaca alguns trechos. Sobre os custos da administração, escreve o prefeito: ‘E lá se vão mais de trinta contos gastos sem uma varredura nas ruas, um golpe de picareta nas estradas, um professor, mesmo ruim, na Brecha ou no Anum.’ A respeito de abusos de latifundiários, confessa: ‘Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me.’ Falando de prestadores de serviço da prefeitura, os descreve como ‘uns pobres homens que se esfalfam para não perder salários miseráveis’. Criticando de forma irônica o fornecimento de energia elétrica firmado na gestão anterior, inclui um adendo de humor ácido: ‘Apesar de ser negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras”. Responde a quem havia sugerido a construção de um novo cemitério com duas frases acachapantes: “Os mortos esperarão mais um tempo. São os munícipes que não reclamam.”

Depois de lembrar que, mesmo  decorridos quase cem anos, os relatórios devem  interessar aos brasileiros pelo que desvelam do estilo do autor de ‘Vidas Secas’; mostram sobre o pensamento do homem que se tornaria  preso político durante a ditadura Vargas; apontam problemas permanentes em nosso país como patrimonialismo e clientelismo, Calazans frisa que “como uma obra literária inacabada, Graciliano não terminou o mandato, mas seus relatórios deixam reflexões sobre o papel do prefeito, esse cargo cada vez mais esquecido em relação às pautas de política nacional que dominam as conversas nos ônibus e padarias, mas fundamental para o lugar onde a vida acontece, ou seja, o município’.   

Em tempo: os relatórios da gestão Graciliano Ramos também caíram sob os olhos do então já renomado editor e poeta Augusto Frederico Schmidt. Entusiasmado com o estilo dos balanços, quis conhecer o autor de dons literários e descobriu que, apesar da custosa gestão administrativa, ele havia produzido um romance chamado Caetés. Schmidt o publicaria dois anos depois.  Aliás, a narrativa se passa em Palmeira dos Índios e tem como protagonista um contador que deseja ser escritor para fazer parte da elite social da cidade. É o livro de estreia de um dos maiores ficcionistas em língua portuguesa.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.