24 de dezembro de 2024
NOSSAS LETRAS

O menino e a garça

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 5 min

Neste mês de outubro a Netflix incluiu em seu catálogo um título, ‘O menino e a garça’, a ser considerado presente valioso para as crianças. E para os adultos que não sacrificaram a criança que um dia foram, pois a vida nos mostra que somos, em certo sentido, todas as pessoas que fomos enquanto crescíamos.

Premiada em março deste ano com o Oscar de Melhor Animação, o filme faz parte do catálogo do conceituado Studio Ghibli e tem na direção um nome lendário, Hayao Myazaki, diretor, roteirista, animador, desenhista de mangás e autor de trabalhos espetaculares como ‘Ponyo, uma amizade que veio do mar’, ‘Meu amigo Totoro’, ‘O serviço de entregas da Kiki’ e o deslumbrante ‘A viagem de Chihiro’, vencedor de outro Oscar.

O enredo de ‘O menino e a garça’ mostra explícita inspiração no livro “Como você vive?”, publicado em 1937 pelo escritor nipônico Genzaburo Yoshino, bastante conhecido em seu país pela criatividade com que levou para a literatura o tema da infância, esse lugar de iniciação à perda. É na infância que aprendemos pela primeira vez a desistir de certas coisas. É na infância que somos apresentados ao sofrimento da frustração. É na infância que descobrimos não ser possível ter a todo momento a atenção daqueles que nos são importantes para responder às nossas demandas. E o que fazemos com as perdas? Em geral nós as sentimos e transformamos para nos desenvolver em direção à vida adulta, ensinam os psicólogos. Esse é o caminho trilhado pelo cineasta ao contar a história de um menino que perde sua mãe aos doze anos.

Chama-se Mahito o protagonista. Seu pai trabalha numa fábrica de aviões e a mãe num hospital. Ele vive em área urbana do Japão quando bombas lançadas contra sua cidade destroem o hospital e matam a mãe. A tragédia leva a família a se mudar para o campo. Ali, na chegada ao novo lar, bela propriedade imersa no verde, o menino descobre que a tia materna havia se tornado sua madrasta. Alma ainda muito afetada pela morte da mãe, ele sai vagando pelas imediações. Aos poucos se vê no centro de uma série de eventos misteriosos que o levam até torre antiga e isolada, habitada por garça falante.

Atendendo ao convite da ave bizarra, que lhe garante estar viva sua mãe, Mahito atravessa o portal que o conduz ao mundo fantástico habitado por vivos e mortos. Lugar sem passado e sem futuro, a um só tempo realidade e fantasia (seria o nosso inconsciente?), tudo ali se conecta no abrir/fechar de inúmeras portas/possibilidades. A jornada épica do herói é marcada por perigos mas também por descobertas que tanto definem o insólito mundo novo como lhe desvelam a verdade sobre si mesmo e seus antepassados. A história das gerações e suas conexões têm papel importante no enredo.

Dada a biografia conhecida, há que se considerar que o diretor leva para a tela seu processo de luto pela própria mãe morta precocemente e as dificuldades no relacionamento com o pai durante os primeiros anos de vida. Nos medos, sustos e angústias do menino Mahito, há muito das angústias, sustos e medos do Myasaki criança. Entretanto, em meio à escuridão, vige a vida- colorida, movimentada, ruidosa. Aos poucos, junto às peripécias pelas quais passa o herói, surge também o descortínio de que o amadurecimento, no sentido de independência e autonomia próprias da existência adulta, só ocorre depois das dores inarredáveis na experiência do viver.

Para cumprir seu propósito de mostrar esteticamente o enfrentamento da dor face à realidade, Myasaki bebe em várias fontes literárias. Além da narrativa de Yoshino, de onde foi pinçado o título original, são nítidas algumas menções a ‘O livro das coisas perdidas’, do irlandês Jonh Connoly; várias aproximações ao coelho de ‘Alice no país das maravilhas’ de Lewis Caroll; certas  similitudes com ‘Torre Fantasma’, de Edogawa Rampo; breve e instigante alusão aos círculos de  ‘A Divina Comédia’, de Dante Alighieri.

Com orçamento milionário, até hoje o mais alto do Studio Ghibli , ‘O menino e a garça’  levou sete anos para ser concluído. Só para se ter ideia do cuidado da equipe de produção, os fotogramas foram obtidos a partir de desenhos feitos à mão, trabalho só concebido pela milenar paciência oriental. Perfeccionista, Myasaki, 83 anos, aposentadoria já anunciada, quis que seu filme, que pode ser o último, tivesse o selo dourado no conjunto de uma obra de arte irretocável.  Por conta desse desejo, convocou outro lendário nome do cinema para a direção técnica: Tadeshi Honda. Este logrou êxito ao fazer com que tudo no filme se movesse, do começo ao fim, desde as folhinhas de grama aos deslumbrantes periquitos em voos arrebatadores. Também conseguiu criar epifânicos momentos de vertigem alucinógena onde o mundo que acolhe é o mesmo que bane. E construiu silêncios de impressionante expressividade. 

Característica de outras obras do autor, as imagens de ‘O menino e a garça’ não tentam explicar a história de forma reiterada, mas principalmente despertar os sentidos de quem a assiste e voa junto com os personagens pelo universo grandioso que abriga diferentes mundos. Lugar de encantamento para uma travessia onde aliados e inimigos medem forças, o mundo criado por Myasaki obedece à lógica do sonho, onde a abstração dita não apenas imagens surreais, mas também conceitos, dinâmicas e criaturas.

 É nos campos da imaginação e dos sentimentos que Myasaki navega.  A eles muitos de nós deveríamos ir também para conseguir viver de verdade e não apenas sobreviver. Viver sem afastar as dores, antes aceitando-as e fazendo delas degraus para alçar novos estágios de amadurecimento.  Por falar nisso, ‘Como você vive?’

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.