24 de dezembro de 2024
NOSSAS LETRAS

Memórias da Depressão

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 7 min

Depois de “Morte e Outras Gentilezas”, coletânea de poemas, o escritor Ulisses Pinheiro Lampazzi, também professor, mestre em História do Brasil pela Unesp, campus Franca, lança seu segundo livro, agora em prosa: ‘Memórias da Depressão’. O tema que o motivou tem inspirado autores ao redor do mundo e cada vez mais chama a atenção dos leitores. A depressão, distúrbio afetivo que não data deste século, mas em nosso tempo parece fazer mais vítimas, acompanha desde sempre a humanidade. 

No sentido patológico, ela se define pela presença combinada de tristeza, pessimismo, baixa autoestima, tédio, cansaço, sensação de solidão, desgosto, fragilidade, pensamentos suicidas. Profissionais da saúde mental utilizam critérios específicos para diagnosticar os sintomas. Artistas buscam nos espaços infindos de criação imagens que traduzam as manifestações do mal cujo primeiro alvo a ser abatido parece ser a esperança.

No prefácio diz o autor que as crônicas contidas em seu livro ‘foram escritas entre março de 2019 e meados de 2021’, e se referem a meses em que foi acometido por crise depressiva, entre 2018 e 2019. Explica que se de início tinha resolvido registrar o que havia vivenciado com o propósito de ‘compartilhar com outros minhas reflexões, retiradas do que vi, senti e vivi neste período (...), aos poucos e sobretudo hoje, ao revisar e escrever este prefácio, percebo que serviu exclusivamente como um trabalho de expurgo e busca por significados às tristezas eventuais que sentia desde a infância’. Esclarece ainda não se tratar a obra de ‘trabalho de psicologia, um manual, um tratado sobre o tema, mas o relato verdadeiro, em primeira pessoa, da dor particular de quem aos poucos conseguiu se aproximar das motivações, desenvolvimentos e efeitos da doença, à qual prefiro chamar de condição.’

Duas páginas além, na apresentação que desvela leitura sensível e profunda da obra, a psicanalista Débora Agel Mellem convida o leitor ‘a navegar na intimidade dos sentimentos vivenciados e relatados pelo autor, o qual compartilha conosco, de forma generosa, sua depressão ou ‘condição’ de seu processo de amadurecimento.’ Lembra ainda que, ‘talvez por ser poeta e ter a fonte da literatura jorrando em seu ser, Ulisses Pinheiro Lampazzi tem o talento de encarar o desconhecido, movimentar-se entre o consciente e o inconsciente, entre a realidade estética externa e a psíquica, dando asas à imaginação e ao pensamento onírico.’ E tendo lembrado a relação íntima entre a psicanálise e a estética, ela comenta que “o artista, com sua sensibilidade, intuição e imaginação, possui a condição de captar o abstrato, a essência nas experiências humanas. Consegue ver de dentro da alma o que é invisível e gerar significados inconscientes com o uso de símbolos.’

Prefácios e apresentações cumprem papel expressivo quando oferecem chaves para abrir leituras. Ambos podem ser essenciais para que leitores adentrem o livro e através de suas páginas trilhem os espaços que sua complexidade humana ensejar.  Nesse sentido, o prefácio do autor e a apresentação da psicanalista introduzem o leitor no universo de sentimentos e sensações peculiares à depressão bem como sugerem a possibilidade de ser ela não uma sentença de letalidade, mas um caminho, embora muito sofrido, para a expansão do mundo psíquico.

Lidos e avaliados o prefácio e a apresentação, adentramos os 49 textos curtos e por demais densos de um autor em busca de traduzir as dores mais profundas de sua depressão. Artista da escrita, poeta além de prosador, a palavra é instrumento através do qual ele irá configurar emoções intraduzíveis por único vocábulo, para não dizer que muitas delas carecem de nomeação em verbete nos dicionários de qualquer idioma. O léxico das emoções é de outra natureza; a sintaxe também. Ganham força então nessa prosa lírica figuras de linguagem como metáforas, metonímias, sinestesias e perífrases; de pensamento como ironias, antíteses, paradoxos, gradações; de sintaxe como elipses, pleonasmos, silepses e anáforas; de som como aliterações e assonâncias. Destaco alguns trechos pinçados ao longo do livro:

“Por anos decorei as paredes esperando visita, deixei duas xícaras à mesa, fiz café e mais, sempre entornado pelo ralo. Já não grito nem varro o chão. A sujeira vai subindo até os olhos. Mergulho e me percorro, sem botão que me ejete ou me delete. (Sonar-pág. 20)

“A cozinha aos poucos ficando laranja, o peito estranho. Um pesar arrastado que começou devagarinho, como um lamento solitário, dois dias antes. O problema é que esse veio de água amarga foi juntando, foi afluindo, somando, de repente parecia me afogar.” (Buraco Negro- pág. 46)

“Todo demônio possui um nome. Como entender o que não podemos definir? Os demônios crescem conosco, vão se enroscando em nossas pernas, se agarram ao tronco. Pior: entram pelas frestas do corpo e se insinuam nos órgãos internos, batimentos, circulação, de tal forma que já não é possível arrancá-los como uma trepadeira no tronco de uma árvore.” (Sombras- pág. 68)

“Quantos saberão o que é caminhar em duas ruas ao mesmo tempo? Em meu próprio alfabeto, acostumei-me a preferir a auto narrativa, como quando desejava que o beijo acabasse para, sozinho, sentir como é ser beijado. Fui ficando cada vez mais dependente de mim mesmo.  Meu peito é um galpão abandonado. Essa imagem vem das fábricas mortas do bairro industrial em que minha avó morava. E que eu inventava.” (Galpão Abandonado- pág. 119)

Caminhar em duas ruas ao mesmo tempo, morar em duas cidades contraditórias, ser cindido por um raio, estar à beira de um canyon são algumas das muitas imagens sugestivas de divisão, conflito, abismo e incompatibilidade evocadas reiteradas vezes pelo autor. Usando seu rico repertório linguístico e semântico, e impulsionado pelo desejo de relatar o que lhe sucedeu em passado recente, ele descreve em parágrafos cortantes os sintomas de sua ‘condição’ de ser-em-sofrimento. E é através dessa escrita que parece descobrir aos poucos que tais sintomas podem não representar fim em si mesmos mas possibilidades para compreender melhor os movimentos da alma e assim encarar a vida de forma menos idealizada, mais amadurecida.  

Houve o tempo de sofrer; o de escrever; e, por fim, o de editar e analisar o ‘trabalho de expurgo e busca por significados’. Nesse terceiro momento, o autor já se mostra outro, diferente, mudado, aparentemente expandido em relação à realidade sempre desafiadora, para a qual há de se estar fortalecido, despido de ilusões vãs, melhor capacitado para as dificuldades do viver.

O psicanalista inglês Adam Phillips, autor de ‘Sobre desistir’, publicado este ano no Brasil pela editora UBU, dedica um dos capítulos de sua obra a comentar sintomas ligados à depressão, que ele chama ‘funcionamento silencioso da pulsão de morte, algo que insidiosa e secretamente mina nossa vitalidade, nossa busca pelo futuro - que é uma forma de obter mais vida.’ Em certo momento, retoma o criador da psicanálise: ‘Quando Freud (...) escreve sobre as forças pulsionais que buscam encaminhar a vida à morte, ele não está se referindo apenas ao fato de que algo dentro de nós eventualmente nos mata; ele também argumenta que existe uma parte do ser que deseja a morte, que quer aniquilar a pulsão de vida que não quer sobreviver a qualquer custo. As duas pulsões míticas de Freud, Eros e Tânatos, descrevem o que ele considera ser a guerra constitutiva que ocorre dentro de nós. O objetivo de Eros é estabelecer unidades ainda maiores e preservá-las dessa forma- ou seja, ligar uma coisa à outra; o objetivo das pulsões destruidoras, por outro lado, é desfazer conexões e destruir as coisas.’

Esse trecho veio à minha mente enquanto lia ‘Memórias da Depressão”. Em primeiro lugar pelo fato de os sentimentos de Ulisses Pinheiro Lampazzi revelarem em linguagem literária (e corajosa) todo esse duelo entre Vida e Morte. Em segundo, porque a descrição feita por Adam Phillips das pulsões destruidoras mostra semelhança com o estilo do autor no nível da coerência entre forma e fundo: o narrador em primeira pessoa se vale de textos fragmentados para comunicar fragmentação.

Mas há que se considerar no conjunto e em contraponto a presença sutil da esperança em aceno rápido mas expressivo na frase habilmente instalada no início do livro e retirada de um dos textos. Solitária e vigorosa sobre o branco espaço do papel, ela nos leva a pensar a experiência do sofrimento como aprendizagem: ‘Essa dor ainda vai ser sabedoria”.  Já no final, é impossível não reconhecer a lucidez e o amadurecimento alcançados e expressos de forma concisa no penúltimo parágrafo de ‘Meio Fio’, que fecha o volume e convida à reflexão: ‘(...) e nunca seremos completos e nunca saberei porque é que eu quero sentir todo o peso do que é viver.’

Obra de autoanálise e autoconhecimento, ‘Memórias da Depressão’ é livro importante para o leitor que não se contenta com platitudes.

Serviço
Título: Memórias da Depressão
Autor: Ulisses Pinheiro Lampazzi
Páginas:146
Foto de capa e do Autor: Délzio Marques
Fotos dos títulos: Ulisses Pinheiro Lampazzi
Edição: Laura Colombini Buranelli 
Editora Ribeirão Gráfica 

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.