Barragem é termo criado para nomear barreira erguida a fim de reter grandes quantidades de água e criar lago, açude, represa. Desde o início da civilização essas construções foram fundamentais ao desenvolvimento da nossa espécie. Permitiram ao homem sobreviver às grandes secas.
Vazante refere-se ao fenômeno ocorrido quando o nível das águas de um rio ou do mar baixa, expondo o que estava submerso. Fenômeno típico de períodos onde as chuvas foram poucas, permite aos animais que se dispersaram com a cheia regressarem às planícies.
Lamaçal define o lugar onde há grande quantidade de lama, considerando-se como tal a mistura viscosa de argila, matéria orgânica e água. É de difícil travessia, dado o fato de que a superfície não sustenta corpos que podem ser tragados para a zona da morte, onde jazem vários tipos de sedimentos.
Maré designa o movimento de subida e descida das águas do mar em relação à costa, fenômeno que se deve em grande parte à Lua. Sem o poder de atração que ela exerce sobre as águas, oceanos ficariam sempre no mesmo nível. Marés variam em escalas de tempo e vão desde algumas horas a vários anos.
Barragem, vazante, lamaçal e maré possuem etimologias diferentes mas única alma semântica, sem a qual não existiriam: o conceito de água. Substância que compõe 70% da Terra e de nosso organismo, é imprescindível à sobrevivência. Ao escolher os quatro verbetes para pontuar seu livro de ficção ‘Quando permitir a maré- contos de Zerobill’, o escritor Baltazar Gonçalves abre ao leitor a possibilidade de pensar a água no nível das metáforas. Pela ordem escolhida, a tensão superficial resultante do arranjo das moléculas de água na superfície mantém-se em ‘Barragem’, rompe-se em ‘Vazante’, perde sua condição de fluir em ‘Lamaçal’. Os três primeiros vocábulos citados funcionam como pilares que sustentam as narrativas agrupadas a partir de temas comuns que lhes conferem unidade. O quarto, circunstancial na oração subordinada, foi escolhido para funcionar como sujeito da frase que intitula o livro recém-lançado pela editora Patuá.
Instigante, este título parece sugerir ao leitor que, antes de nadar de braçadas, esteja municiado de um marégrafo, aquele instrumento que mede e registra automaticamente o nível da maré ao longo do tempo: ora flutuador que opera em águas rasas, ora instrumento sofisticado para alto-mar. Os dados coletados pelo marégrafo são importantes, pois ajudam a prever inundações e assim preparar estratégias para resistir a catástrofes. Escolher um ou outro vai depender do grau de sensibilidade de cada leitor ao navegar pelo texto.
E que fiquem os navegantes avisados: eles não estão diante de livro para entretenimento porque essa não é a praia do escritor que já publicou ‘Tecido na papelaria’; ‘Diário dos Miseráveis’, ‘Tanto mar entre nós’, ‘Albergue de girassóis’ e comparece com sua escrita autoral no Caderno Nossas Letras do portal Sampi/GCN. Quem o acompanha desde o início terá percebido como seu repertório se enriqueceu e sua trajetória evoluiu na busca por um estilo apurado para dar conta de traduzir um oceano de emoções complexas. Assim, no conto que abre o volume, ‘Vou-me embora para Málaga’, uma boutade com o conhecido poema de Manuel Bandeira, ‘Vou-me embora pra Pasárgada’, a linguagem que se quer coloquial mas enxuta introduz o leitor no universo profundo do narrador:
“Merda, como passo a limpo nossa história se falta o pedaço superior? Sobrei rascunho, papel amassado na mudança. Tinha essa imagem de São Francisco em barro que ficaria para trás. Começar com ‘merda’ não foi bom negócio, eu devia ter dito ‘graças a Deus’, para não espantar ouvidos acostumados em ciladas.”
A expressão ‘sobrei rascunho’, na primeira pessoa, quando o contexto autorizaria ‘sobrou rascunho’, na terceira, tanto remete para o ‘depois eu conta’ (marca registrada pelo autor) em lugar do usual ‘depois eu conto’ como desvela uma fusão do narrador com o narrado, como se ele fosse a própria narrativa. É um dos recursos estilísticos poderosos de que o escritor lança mão ao levar o narrador de todas as histórias, Zerobill, a adentrar mundos interiores, aqueles que como as raízes das árvores estão submersos mas em constante movimentação.
Há outros recursos potentes, como a intertextualidade criativa, marca de todas as histórias: em ‘Barragem’ recorta-se universo onde a linguagem poética, plena de imagens de grande plasticidade, desenha espaço onde são registrados insights que conferem beleza ímpar ao texto apoiado na interação com Guimarães Rosa no título ‘No Nhumirim, perto da lagoa’, e na epígrafe de José J. Veiga em “A hora dos ruminantes”: “ tem coisas que a gente só vê o tamanho quando depois de nós, já nas pequenas coisas mudadas se percebe duma vez, como a lua minguar calando nossa mãe que sempre resmungou: ‘lua crescente mata gente’.
O tom muda em ‘Vazante’, que exibe página preta para acolher palavras do Anthony Burguess de ‘Laranja Mecânica”: ‘E vejo isso claramente: essa questão sobre condicionamento de marginais. Música e o ato sexual literatura e arte, tudo agora deve ser fonte não de prazer, mas de dor”. Antes de começar a contar a história que alimenta ‘Raiva Paralítica’, uma citação de Clarice Lispector só aparentemente ingênua cria expectativa para o que vem: “O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo’. O enredo impactante traz a história da castração cruel de um bezerro sob o comando de uma ‘confraria dos miseráveis” que “se agita no regozijo da masculinidade e outros totens menores. Os testículos arrancados, dois ovos brancos encobertos de sangue e nervos.”
E então, ‘Lamaçal’. Não é à toa que pertença ao Kafka de ‘Colônia Penal’ a epígrafe escolhida para o conto “Inspetor na oficina”, o primeiro do último bloco. Tem muito a ver com o clima pesado e a fina ironia do autor tcheco o relato sobre a presença intrusiva de um censor prepotente que avalia o trabalho de uma equipe de artistas empenhada em produzir um curta: ‘No dia seguinte o relatório do inspetor avertia que ‘os procedimentos do fabrico das sensações nas cenas depreciam os bons costumes, a lei de incentivo à cultura não pode patrocinar linguagem obscena fora dos padrões da família brasileira’
Somando-se ao escritor de ‘A Metamorfose’, outros autores que fizeram viagens ao mais profundo de si foram escolhidos por Baltazar Gonçalves para realçarem os relatos de Zerobill no último bloco. Temos por aí Edgar Allan Poe, Ana Cristina César, George Orvell e Allen Ginsberg que fecha o volume inspirando a escrita de ‘Sete pecados: um baque para Orgè’. Narrado como os outros em terceira pessoa, com tempo cronológico marcado no relógio, o relato se divide em períodos que num crescendo perfilam os sentimentos do protagonista, um adicto que precisa urgentemente de “um baque”. São doze horas de agonia e alguns êxtases, onde os pecados capitais mostram sua face. Embora composto em tom deprimente, o final resgata uma possível esperança. O escritor não desampara seu leitor.
Sun Tzu, autor de livro famoso, “A Arte da Guerra”, diz que é preciso estar atento às variáveis do ambiente, o externo e o interno, para vencer batalhas. Considerando o dito icônico, ‘viver é lutar’, que o leitor observe as barragens, vazantes, lamaçais e marés criadas pelo autor como grandes metáforas para situações de vida. Se não para triunfar, ao menos para suportar o sofrimento e ressignificá-lo, como sugere o narrador em vários dos contos deste livro que pode ganhar prêmios de excelência, caso o escritor se disponha a inscrevê-lo num dos vários bons concursos literários que chegam com a primavera.
Serviço
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.