06 de outubro de 2024
NOSSAS LETRAS

‘A Mãe Infinita’: uma leitura

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 7 min

Palavras existem para nomear a realidade, explicam os linguistas. Todos os idiomas encontram maneiras de dizer o que os falantes precisam e desejam traduzir. Esquimós possuem nove termos para nomear neve e espanhóis seis para descrever chuva. Em todas as línguas encontramos exemplos de sinonímia abundante. Para as coisas concretas, o homo loquens e o symbolicus não tiveram problemas na criação de nomes; mas para aquelas que conotam sentimentos até hoje há dificuldades, das quais psicólogos e escritores costumam dar conta, ajudando pacientes e leitores necessitados de alfabetização emocional. 

No processo de comunicação de fatos externos ou internos os sinônimos, por suas nuances, facilitam o entendimento para que se cumpra o significado pleno do que se tenta dizer.  Mas sinônimos, bom lembrar, nunca são perfeitos na equação comparativa, em geral só esbarram na semelhança ao ultrapassarem o sentido primeiro. Nesse último caso inclua-se, no vocabulário português, órfão e órfã, estados para os quais o dicionário aponta “baldo, carecente, carecido, carente, desprovido, destituído, escasso, falhado, faltante, falto, faltoso, minguado, necessitado, parcimonioso, parco, pobre, precisado, privado, vazio”. Dezenove palavras, cada qual com sua nuance específica no universo que é a linguagem.

Derivado do grego orphanos, que os romanos perpetuaram, órfão e seu feminino referem-se nas línguas latinas ao destituído de pai ou mãe. Assim, por séculos, têm-se escrito e falado “órfão de pai” ou “órfão de mãe”, conforme a perda seja de um ou de outra. No reino abundante das palavras, é interessante pensar que tal substantivo sempre contemplou somente as crianças. Como se a idade adulta blindasse contra o sofrimento de perder aqueles a quem se deve o existir.  Como se só as crianças sentissem vazio, desamparo, tristeza, saudade, dor pela ausência definitiva daquele ou daquela de quem guardam os genes e as impressões mais profundas da vida que começa. Circunscrever os termos apenas à infância acaba sendo excludente. Porque diante da morte do pai, da mãe, ou de ambos, a dor do filho ou da filha adultos é igualmente profunda, se o vínculo em vida foi sustentado pelas emoções- as que elevam e as que rebaixam. A esse processo doloroso que é preciso atravessar quando partem os que nos foram importantes chamamos luto.

Foi por conta de um luto excruciante que a escritora Vanessa Maranha, cuja mãe faleceu em abril de 2021, decidiu-se a escrever “A Mãe Infinita”. Ao se dedicar ao ofício durante três anos, com breves interrupções, conseguiu aos poucos amenizar sua dor. Mas fique claro que “A Mãe Infinita” não pertence à área da autobiografia e sim ao gênero ficção. Contrariando Elizabeth Bishop no conhecido poema onde a autora de língua inglesa credita como fácil “A arte de perder”, a escritora de “A Mãe Infinita” já expressou de público a dificuldade sentida diante da perda de sua mãe e a consequente travessia do luto. Por isso, o comentário: “Esse é um livro sobre mortes ou de mortos. Um livro sobre a necessidade de dizer para não esquecer, de dizer para, em algum momento, poder parar de dizer”. 

A protagonista de “A mãe infinita” é uma mulher que se torna órfã.  Narrados em primeira pessoa, com o recurso extenso do monólogo interior, quinze capítulos compõem o livro sem linearidade, suporte confortável só para quem aprecia o relato mais fluido e superficial. Fosse linha reta, não se encontraria o leitor diante do já inconfundível estilo de Vanessa Maranha, considerando como tal não a técnica, mas o olhar: o estilo é a revelação, impossível por meios diretos e conscientes, da diferença de qualidade que existe na maneira como o mundo surge aos olhos dos escritores: “a infância, um véu escuro toldando os olhos, vista por frestas. A estranheza de existir feito uma samambaia teimosa num vão de terra.”

A propósito de sua escrita, em recente postagem numa rede social onde costuma se manifestar, escreveu a autora: “A literatura que faço tem mais a ver com sondagem psicológica, com desconstrução do estabelecido, com crítica, com denúncia do ‘demasiadamente humano’ em nós. Tocar no nervo. Refazer sentido. Negar hipocrisia. Ser subversiva e experimentar. Buscar formas. Pode ser até mesmo terapêutico.”

É dessa literatura que leitores sedentos de verdades, às vezes difíceis de encarar, podem beber em “A Mãe Infinita”.  Fragmentados, como os recupera a memória da narradora, acontecimentos volumosos ou miúdos pulsam em igual intensidade e carregam dentro de si partes de um enredo que aos poucos o leitor compreende como narrativa. A protagonista, em recortes bem costurados pela emoção inequívoca conferida pela autora, lembra com seus movimentos alguém que desfaz pelas pontas os fios de longa trança até chegar aos folículos capilares onde a vida ainda lateja. História de perdas, acima de tudo, o livro impacta ao despertar reflexões sobre a morte não apenas de uma mãe, também de outras mães, de avó, tia, prima, gentes fora do clã: “E para além de tudo, morre-se. O mais que se faça e se erga e que se movimente, que se grite, que se cale, em desvio, que se ame. O maior e o melhor que se possa está invariavelmente datado, impresso pelo fim.”

Um dado perturbador em “A Mãe Infinita” é o olhar da filha sobre o passado ainda presente, sua busca de sentidos em diferentes momentos do convívio de ambas. Livre da cultura judaico-cristã que costuma levar à idealização da figura materna, a filha desvela na sua mãe, resgatada pela via da rememoração, e alguma vez pelo sonho, facetas humanas que elidem qualquer romantização infantilizada: “Era quase material a substância do amor-ódio daquela mãe e eu quase já sabia quando a chave de dentro girava e travava qualquer possibilidade de afeto.” Antes ela havia escrito: “Há algo maior e não-dito nas relações.” Quem há de duvidar?

Investindo com coragem nas lembranças voluntárias, e em outras que parecem tomá-la de forma compulsiva, a narradora busca compreensão para o que viveu numa relação familiar povoada por estranhamento, dúvida, mistério, curiosidade, banimento, ciúme, algum humor, algum amor, indiferença, cobranças e muitas interrogações. E no propósito de descrever a mãe, a filha vai se desnudando também diante do leitor, na medida em que os textos formam camadas superpostas e adensam seu perfil: “Minha mãe me julgava esquisita. Eu sempre andei mesmo longe da árvore, estranha, sim. Vejo céu recortado de pipas vermelhas. A memória inventando mais.”

Muitos anos e rememorações depois desta cena, uma experiência de vida coloca ponto final ao livro e talvez autorize a lembrança das matrioskas, conhecidas bonecas russas que carregam dentro de si outras oito, em tamanhos decrescentes, colocadas uma dentro da outra e retiradas dos ventres de pano ou louça sem vestígios de cordão umbilical, pois sem umbigo. Sob essa possível óptica, e atentando para a bela capa que traz a imagem de uma rosa imarcescível, o adjetivo do título parece contrair-se e ganhar status de antônimo.

Através de ricos recursos imagéticos, da capacidade de içar sentimentos do âmago, da inegável vocação para lidar com a sintaxe de forma singularíssima, a autora leva a protagonista a traduzir sua orfandade numa linguagem que define suas dores pela via de uma sinonímia que transcende a etimologia e o léxico. Assim ela ultrapassa o verbete, ressignifica-o, e pelo poder da linguagem literária o oferece aos leitores. As orfandades são muitas e podem estar repletas de áreas cinzentas, pouco oxigenadas, necessitadas de luz e ar puro. 

“Livros legítimos devem ser filhos não do dia claro e das conversações, mas da obscuridade e do silêncio. E como a arte recompõe exatamente a vida, ela flutuará em torno às verdades que atingimos em nós mesmos, uma atmosfera de poesia, a doçura de um mistério, o vestígio da penumbra que atravessamos, a indicação assinalada com precisão como que por um altímetro da profundidade de uma obra”. São palavras de Proust sobre criação literária, nas últimas páginas de “O tempo recuperado”. Vão bem para definir a qualidade de “A Mãe Infinita”, romance que se aprofunda ao falar de morte, luto, tempo e memória, temas imprescindíveis porque não podem ser alienados da vida. 

Serviço

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.