24 de dezembro de 2024
NOSSAS LETRAS

O imperador ofuscou o Bodegueiro?

Por Luzia Camilo | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 5 min

Quando vemos autores de nossa cidade despontarem com algum livro, ficamos felizes pelo ato e coragem que a exposição demanda. Escrever um livro exige tempo e criação. “O Bodegueiro”, de Juarez Zaias, com apresentação visual impecável, nos seduz de imediato. Ative-me à leitura em quase todas as noites, nas fímbrias horas que nos sobram depois do trabalho diário. Um livro é feito de muitas coisas - ou melhor - ideias. Encontrei-me com “O Bodegueiro” na esquina onde uma banca de revista que ainda persiste. 

O sr. Bodegueiro mostrou-me seu lugar de residência, os usos e costumes de sua época, detalhando-os de maneira a petrificá-los na memória do leitor, de jeito a fazer explodir a saudade nos corações que, sensíveis, se lembrarão de tempos passados, vívidos nas possíveis lágrimas de olhos que já viveram antigos tempos, na verdade, outra Era em que no momento não sabemos precisar quando terminou. Para o Bodegueiro e todo o tempo de glória de sua existência, findou-se na página 222. Levou consigo o faxinal, pois tudo ali era orgânico.

Eras se findam e aos que se lembram das coisas resta escrever, registrar, chorar, lamentar e guardar. Os faxinais ainda existem, agonizam aqui e ali; as Araucárias resistem impecáveis, mas ouvi dizer que estão geneticamente mortas, a diversidade foi destruída ao longo do século XX. Deixo essa ciência para quem puder comentar...Lamentei a solidão final do Bodegueiro, no entanto ele era um homem de seu tempo, e o tempo dos homens não transcende para além da memória, verdadeira ou criada. Se o livro foi definido como idílico, não se pode dizer o mesmo da segunda parte, dada a intenção do imperador em ofuscar o Bodegueiro.

Partindo de outra linha, agora ideológica, a monarquia ressuscita no discurso de Janantônio. Maria Valentina Gonzaga tomou emprestado o último sobrenome do imperador Dom Pedro II. Ermitã e guardiã, terá no neto Bibiano, também um sobrenome do imperador, um amigo de Janantônio na missão que está reservada a este. Apesar de Janantônio ser detentor de grandes saberes jurídico e sociológico, e defender por prazer os menos favorecidos, desconhecia os meandros do Segundo Império brasileiro, foco ideológico desta parte do livro. Janantônio concorda que “os caboclos nativos nada possuíam” para fixar-se num lugar, todavia, em seu grandioso discurso, defende a selvagem sobrevivência do indivíduo, mesmo que despossuído de tudo. Contrariando seu peso acadêmico de defensor dos fracos, sustenta que nenhum governo viciado em humanitarismo dê auxílio aos miseráveis. No entanto, o personagem compra 250 km2 de terras para distribuir de graça aos ex e futuros faxinalenses. Uma contradição idílica. “O homem nasce puro e livre”, assim como pensou Voltaire, no entanto a sociedade, o conjunto, e por fim as inerências sombrias dos humanos, o corrompem. Voltaire não foi citado na bibliografia. Esse romance é historiográfico ou histórico?

Enfim, o discurso do protagonista exalta o ideal de Dom Pedro II em recuperar a Floresta da Tijuca, que circundava a própria sede do governo na capital do país. Sabemos que “o sonho do imperador” em recriar, replantar a Floresta em questão foi motivado pela falta d’água na redondeza, causada pelo avanço da exploração local. Imagina faltar água na sede do governo? Um governo que durou 40 anos. Passemos agora para o discurso de Janantônio sobre a educação promovida por Dom Pedro II: “o único governante brasileiro que pensou seriamente na educação como a única forma de reduzir o aviltante paradigma social do nosso país”. Vejamos a realidade da realeza: apesar da Constituição de 1824 definir a educação primária como obrigatória ao Estado, pouco foi feito durante o império. Basta olharmos nossas casas para vermos que nossos próprios pais estudaram muito pouco.

A educação no Brasil tornou-se universal em 1988 e ainda está longe de ser satisfatória. Dom Pedro II interessou-se pela educação superior e algumas outras instituições elitizadas, Museu Nacional, Belas-Artes, por exemplo. Enfim, tudo o que o rodeava e o laureava na relevância que o contexto exigia na sua condição de imperador. Durante o Segundo Império, o único Censo Demográfico foi realizado em 1872, constatando que 82% da população era analfabeta. Em 1890, já no início da Primeira República, o índice foi o mesmo. República e Império foram indiferentes à educação. Em 1940 o IBGE, criado por Getúlio Vargas, passou a medir o analfabetismo de pessoas com mais de 15 anos e constatou que 67 %   não sabiam ler ou escrever, ou seja, Império e Primeira República, essa tão rechaçada pelo autor na terceira parte da obra, em nada difere em relação à nobreza de Dom Pedro sobre educação. Esses dados aqui expostos foram levantados pela historiadora Julia Calvo, da PUC-Minas, e citados pelo Estadão Verifica, em 26 de novembro de 2020.

Sonho realizado, com a recriação idílica do faxinal, o autor exalta “os bons ventos da globalização econômica” - ressalta - consciente. Entendamos: não existe globalização consciente. Pois, por si só, a globalização arrebenta ideias nacionalistas, esboroa Estados, desestabiliza economias locais, quebra barreiras econômicas seculares que nenhum conservador monarquista suportaria. Não há conservação na globalização, tudo está disponível à voraz centrifugação do capital e do lucro imoral e amoral. Se houvesse alguma globalização consciente haveria também ditaduras conscientes, comunismo consciente, teocracias conscientes, autocratas conscientes, malucos conscientes...Teorias têm núcleos duros, férreos. O abismo do liberal-conservadorismo é o Neoliberalismo globalizante, embora estejam tão próximos.

Expor-se cruamente nas livrarias, pois o mundo é grande, conforme o poema de Drummond, comporta o preço e o apreço. O preço é sermos desagradados com os filtros de leituras alheias. Como apreço, que cena mágica o autor traduziu em palavras na página 124! Dessas cenas faz-se um livro para ser lembrado, e esta valeu a minha leitura! Entre espinhos e rosas, é sempre um orgulho termos um escritor onde estão nossos pés. Juarez Zaias é parte desse orgulho.