Passei grande parte do sábado 17 na frente da TV, que trazia desde as primeiras horas informações sobre a morte de Sílvio Santos, cuja história extraordinária milhões de brasileiros conhecem e admiram: não é comum um vendedor de canetas e capas plásticas de título de eleitor alçar o topo da fama na televisão e manter-se no ranking dos mais ricos do país por mais de meio século.
Fiquei impressionada com o número de depoimentos afetuosos de pessoas nas ruas, gente que havia passado quase todos os domingos de sua existência contagiada pelos gestos largos, sorriso amplo, dinâmica corporal singular, palavras bem escandidas na voz potente que era, ele reconhecia, o maior patrimônio. Pensei que sua imagem permanecerá por muito tempo na memória de gerações a quem ele tocou de alguma forma.
E foi como alguém da minha geração que me surpreendi ao ver desfilar na tela artistas que havia conhecido em tempos já distantes. Eram cantores, instrumentistas, compositores me mostrando seus rostos que eu guardava jovens. Nossa memória não costuma acompanhar a transformação física dos que deixamos de ver, embora a mente saiba que envelheceram com o transcorrer dos anos. O retrato que permanece é o da última imagem. Eu não havia atualizado as imagens, como dizem os internautas.
Por isso, de repente, me vi como Marcel, o protagonista de “Em busca do tempo perdido”, nas últimas páginas da monumental narrativa de Proust. Presente depois de alguns anos numa festa no palacete dos duques de Guermantes, ele estaca no alto de escada por cujos degraus sobem os convidados. Surpreende-se com a ação devastadora do tempo sobre pessoas que conhecera. Pergunta-se onde estariam as faces que o tinham encantado no passado. Desconhece no homem trôpego e abobalhado o culto e arrogante Barão de Charlus; confunde Gilberte com Odette de Crécy, olvidando que a primeira é filha da segunda. Etc. Longa é a lista de enganos, confusões e equívocos tratados de forma especular por um dos maiores romancistas de todos os tempos.
Esse encontro metafórico permitiu ao narrador mergulhar mais uma vez de forma profunda na questão da voragem do tempo, pedra de toque de sua literatura. O monólogo interior, a conversação consigo, conduz o leitor a pensar na ação implacável dos anos e seu significado individual e também histórico; na impossibilidade de conter a marcha do tempo; na dificuldade de entendê-lo, suportá-lo, aceitá-lo como catalisador de mudanças que chegam de forma paulatina mas são no final drásticas. E, claro, esmiuça com dor a questão crucial que é a finitude da vida. Pensar nisso dói. Nascemos para morrer. Mas, entre nascer e morrer, muitas coisas podem ser feitas.
Sílvio Santos fez coisas importantes e originais como comunicador e o resgate de antigos programas desvelou não apenas quantos artistas ele promoveu mas também quanto mostrou, conscientemente ou não, do país que evoluía, embora aos trancos e barrancos. Pelo viés desses programas ao longo das décadas percebem-se as mudanças que o tempo impôs às pessoas e aos comportamentos. Isso também é história, protagonizada por um homem incomum em seu imenso talento.
Os que descobrem cedo o talento com que foram aquinhoados percebem mais rápido um propósito para suas vidas. Sílvio Santos identificou o seu aos 13 anos, batalhando como camelô nas ruas do Rio para ajudar a família de ascendência judia emigrada ao Brasil. Desde sempre fez tudo com prazer, testemunharam os mais próximos dele, de onde se subentende que o dom torna o trabalho uma atividade lúdica, ainda que o empresário sustentasse que seu êxito derivava de “99% de trabalho e 1% de sorte”.
É inegável que trabalhou muito e olhou especialmente para o povo. Imerso na fala popular criou um bordão, sua divisa: “Do mundo não se leva nada/ Vamos sorrir e cantar”. Não apenas sorriu e cantou, mas o fez de forma verdadeira por tempo enorme. Insuflou ânimo nas salas em geral modestas onde os televisores ficavam ligados no seu canal durante horas consecutivas. Era como se pretendesse energizar o primeiro dia da semana, preparando a mega plateia de milhões de brasileiros para os próximos seis dias de luta, que disso é feita a vida cotidiana. E a maneira como conduzia cada programa junto às suas “colegas de trabalho” ultrapassava as fronteiras do auditório, abria-se em grande leque e oxigenava a alma de homens, mulheres e até crianças de norte a sul. O povo gostou desse homem simples e otimista que não renegava cheiro de gente como o presidente que preferia cheiro de cavalos.
Mas se é verdade que do mundo nada se leva, também é verdade que a morte evidencia o que fica. E, olhando para as manifestações de carinho e respeito de milhões, é nítido que Sílvio Santos deixou muito mais que bens monetizáveis. Ele emulou em seu público uma ética de trabalho e esperança e fez do bom humor seu ponto de contato mais profundo com as pessoas. Por fim, encerrou de forma digna sua vida, numa época onde a TV já deixa de ser o que foi, aniquilada pela revolução que nos impôs inexoravelmente as plataformas digitais. O mundo já é outro.
Fato raro, sua morte fez irromper em toda a mídia brasileira e internacional, sem exceção, considerações elogiosas a um trabalho de oito décadas. Não é pouco: num país que adora falar mal de quem é exitoso, e onde “sucesso é ofensa pessoal” como grifou Tom Jobim, a avaliação final conseguiu balançar o chavão de que “toda unanimidade é burra”. Nem sempre.