16 de julho de 2024
NOSSAS LETRAS

O Avesso da Pele

Por Luzia Camilo | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 3 min

Uma história comum, de um casal comum de negros no Rio Grande do Sul. Um jeito de escrever que nos deixa pensando página a página, peça a peça como num mosaico que irá mostrar algo no final. Intimista, banal, envolvente. Assim me pareceu O Avesso da Pele, obra premiada de Jeferson Tenório. Livro censurado pelos governos do Paraná, Goiás e Mato Grosso, fato que, depois das polêmicas expostas nas redes sociais, os respectivos governos voltaram atrás e o livro voltará às bibliotecas, disponíveis aos alunos do Ensino Médio. Um realismo que choca, que nos insere nos meandros do racismo insolente e atrevido que toleramos sem censura capaz de encolhê-lo a ponto de acorrentá-lo às linhas da Lei de forma efetiva. É a cultura, é a estrutura, é o racismo estrutural falando mais alto, conceito já solidificado

A história dos personagens de O Avesso da Pele vem em minha mente como uma história que escapa da caneta de Tenório assim, calmamente, como que contada a um amigo, num fim de tarde tedioso, revolvendo memórias, desenhando a trajetória de uma vida inteira, realista, intimista, sem dó nem piedade dos personagens, sem exaltar, sem minimizar, contada assim, em voz baixa, talvez numa mesa num canto de bar noturno, descrevendo cenas íntimas com uso de palavras indizíveis em voz alta. Livro para pensar na malha tempestuosa da realidade social brasileira. Parte considerável de pessoas que insiste em continuar racista e adora jogar tudo embaixo do tapete. Assim todos permanecem em seu pedestal hierárquico. Como mote para concluir que sempre foi assim, “cada um no seu quadrado”, ou que simplesmente “racismo não existe, eu mesmo tenho um amigo negro”. E assim é o destilo do absurdo. Seguindo a história de Tenório, fiquei pensando na batalha íntima dos personagens, especialmente de Pedro, suportando como pedra tantas intempéries desde a infância, onde a violência também grassa silenciosa. Sua glória momentânea com o sucesso junto a alunos avessos a qualquer abordagem, seu trágico fim repentino, ao sair da escola realizado, num êxtase que sintetizou todos os desejos reprimidos de uma vida inteira de mediocridades e desamores. Uma obra bem construída, profundamente triste e coerente.

O dilúvio que vimos tomar conta de metade do Rio Grande do Sul fez emergir uma realidade pouco visível para o restante do país. A maioria das vítimas são os invisíveis da sociedade. Vimos pela televisão, e outros meios também, emergir das baixadas e beiras de rio, populações negras, mulheres fartas de filhos, pobres em geral e de tudo. Essa é a realidade do Estado mais branco da federação, cheio de orgulhos e lenços vermelhos, a lembrar sagas do passado. Faltará arroz? Sobrará preconceito? A água baixou, a sujeira foi limpa, os mortos enterrados, a reconstrução segue e seguirá por alguns anos a porvir. Onde estarão os protagonistas dessa história real? Em algum conjunto habitacional de casas em forma de caixa de fósforos (horríveis casas sem identidade, descaracterizadas), esperando reconstruir suas vidas materiais, encontrar seu canto, enfim, “seu quadrado”, longe da fúria vingativa da natureza. A cultura da separação, o racismo estrutural está no dia a dia, está na presença do corpo e na boca dessa sociedade que faz questão de não esquecer seu passado desairoso e sem glórias. Logo, uma outra história realista como a do talentoso Tenório estará sendo contada a um amigo, num canto de bar, ou num outro colóquio, onde um vinho também destrava sentimentos contidos. Vem à tona histórias sobre os que conseguem, mas a maioria continua massa discriminada, esquecida, inculta e bem aproveitada em arrebanhamentos ideológicos de todo tipo. Aos que, como Jeferson Tenório, captam essa realidade e podem colocá-la em estado literário, deixarão para sempre o registro de como nossa sociedade se comporta, se move e dá voltas, travando avanços com censuras descabidas, reforços ideológicos que cooptam as próprias vítimas.