Senti alegria quando meu neto de 14 anos contou que sua classe vai ler no segundo semestre “O apanhador no campo de centeio”, publicado em 1951, quando os avós dele e dos amigos ainda eram criancinhas. Transcorridas mais de sete décadas, o romance de J.D. Salinger continua emanando a verdade das coisas perenes. No caso, os sentimentos confusos e dolorosos que marcam a adolescência. À parte não haver na narrativa celulares e redes sociais, as experiências do protagonista não ficam muito longe daquelas vividas por adolescentes que conheço. Ninguém em nenhuns tempo ou lugar passa ileso por esse processo que conduz à vida adulta.
É sobre essa passagem complicada que nos conta o autor através do narrador em primeira pessoa, Holden Caufield, 16 anos e muitos problemas, expulso de todas as escolas por onde passa, apesar da reconhecida inteligência. Mandado embora de mais uma, por conta de uma briga, e sem ânimo de voltar para casa e contar o fato aos pais, decide vagar por Nova York durante um fim de semana. Anda por avenidas, entra em bares, encontra turistas, vê uma ex-namorada, conversa com professores e com um conhecido mais velho que lhe pergunta: "Quando finalmente você vai crescer?" É disso que trata o livro em seus 26 capítulos: o complexo trânsito de uma fase para outra, o medo de crescer, a saída da adolescência para integrar o mundo adulto, enfim, a luta por encontrar um lugar no mundo.
A cada ano são vendidos 250.000 exemplares deste romance nos países de língua inglesa. As traduções contemplam mais de vinte idiomas. A crítica o considera, quase por unanimidade, uma das maiores obras literárias do século passado. No entanto, até 1990, ou seja, por quase quatro décadas, “O apanhador no campo de centeio” foi o livro mais proibido nas escolas públicas dos Estados Unidos e mesmo em outros países. Como o Brasil. Por quê? Talvez porque Caulfield ouse demais. Ou, quem saberá, porque Caulfield faz perguntas de difíceis respostas: “Para onde vão os patos do Central Park no inverno?”
Pensei de novo neste livro extraordinário ao saber da proibição no Brasil de “O Menino Marrom”, de Ziraldo Alves Pinto, retirado há um mês de escolas municipais de Conselheiro Lafaiette, MG, depois da pressão de famílias de estudantes que o classificaram como “agressivo” a partir de dois episódios totalmente descontextualizados. Quem leu todas as páginas do livro saberá que a obra tem como temática a diversidade racial, sem marcas de preconceito. Escrito para crianças, por um autor reconhecido aqui e no Exterior, conta de forma descontraída a história de dois meninos, um branco e outro negro, o rosa e o marrom. Eles estudam juntos na mesma escola, inventam brincadeiras, vivem aventuras, são curiosos e questionadores, fazem descobertas e desvelam uma amizade bonita. A clara intenção do autor narrador é mostrar de forma leve e bem-humorada os dilemas vividos por uma criança colocada diante de preconceitos raciais.
Aliás, é bom lembrar, a presença de conteúdos que elegem a diversidade étnico-racial no currículo vem sendo exigida nas escolas públicas desde a implantação da Lei Federal nº 11.645/08, que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena. É dessa forma também que se deve valorar a indicação de “O Menino Marrom” por professores interessados no crescimento de seus alunos. A leitura desse livro convida a pensar, refletir e discutir sobre racismo, formação cidadã e construção de valores humanistas. É preciso dizer mais?
Outro exemplo recente de censura ocorrido em contextos educacionais mirou o livro "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório. Publicado em 2020 e vencedor do Prêmio Jabuti no ano seguinte, foi selecionado para distribuição escolar pelo Programa Nacional do Livro (PNLD) no atual ano letivo. A história gira em torno de Pedro, um jovem negro que, após o assassinato de seu pai por policiais, embarca em uma jornada para desvendar o passado familiar e reconstruir sua própria identidade. O enredo tece um retrato íntimo das relações familiares de Pedro, permeadas por amor, perda, luto e ressentimentos. Ao longo da trama, o protagonista confronta seus próprios fantasmas e traumas, buscando assumir as rédeas de sua vida. A obra, que gera debates importantes sobre o racismo estrutural no Brasil, e resgata um período negro de nossa história, o da ditadura militar, conscientiza o público sobre a violência e as desigualdades que afetam a população negra. Foi censurado pelas secretarias de educação do Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul, que ao recolherem exemplares já distribuídos às escolas, alegaram que a obra apresenta “expressões impróprias” para menores de 18 anos. Seria cômico se não fosse trágico.
Em um país que se orgulha de sua democracia, é inaceitável que práticas como essas persistam em pleno 2024. Ouvido a respeito, Tenório ressaltou que “não há espaço para qualquer forma de censura em uma sociedade que valoriza a liberdade de expressão e o livre debate de ideias. A censura limita o direito dos cidadãos de formarem suas próprias opiniões, de terem acesso a diferentes perspectivas e experiências, além de proibir a circulação de obras que abordam questões sensíveis e relevantes. A censura cala vozes e incentiva preconceitos.”
No quesito livros proibidos, os de Salinger, Ziraldo e Tenório não estão sós. Censurar, proibir, incinerar livros faz parte da história de conservadores e progressistas, da direita e da esquerda, no mundo inteiro. E desde que os primeiros escritores começaram a publicar. É extensa, por exemplo, a lista dos que integraram o Index Librorum Prohibitorum ou Índice dos Livros Proibidos, de 1571 (só extinto em 1966), uma relação formal das obras interditas àqueles que professavam a fé católica, sendo vedadas a leitura, tradução, detenção, empréstimo ou venda dos mesmos. Constavam dela escritores como Montaigne, Dante Alighieri, Descartes, Monesquieu, La Fontaine, Pascal, Galileu,Kepler, Hobbes, Lutero, Calvino, Bacon, Voltaire, Victor Hugo, Alexandre Dumas, Kant, Pascal, Spinoza, Rousseau, Berkeley, Hume, Locke, Diderot, Zola, Balzac, Flaubert, Nietzsche, Darwin. E o vovô Machiavelli, claro.
Olhando para esses nomes e as obras que produziram para a expansão da filosofia, da democracia, da política, das artes, das ciências, da cultura, da literatura, torna-se inevitável pensar que nenhuma censura pôde calar as ideias que elas aportaram, pois nada é capaz de calar uma voz quando ela está carregada de verdade. Acreditar nisso é libertador.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras