16 de julho de 2024
NOSSAS LETRAS

Narizes de terracota

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 5 min

Magnífico e impressionante foram os adjetivos que encontrei para definir o documentário disponibilizado recentemente pela Netflix a seus assinantes e cujo título é “Os Mistérios dos Guerreiros de Terracota”. Oriundo do idioma italiano, terracota significa “terra cozida” e descreve com precisão etimológica o material que resulta da argila modelada e depois queimada em altas temperaturas. Centenas de estátuas de terracota em tamanho natural, escondidas em extensas cavernas por quase dois milênios, motivaram o trabalho do cineasta inglês James Towell.

No filme acompanhamos a descoberta acidental de alguns agricultores no ano de 1974, na China ainda dominada por Mao Tse-Tung. Cavando um poço artesiano no interior da província de Shaanxi, eles encontraram algo incomum. Chamaram arqueólogos que trabalhavam a pouco mais de um km, escavando o local onde estaria a tumba do fundador da dinastia Qin, o primeiro dos imperadores chineses. Os especialistas identificaram entre pedras, torrões e poeira o que pareceu ser a ponta de um nariz. Usando seus delicados instrumentos de prospecção, trouxeram à luz o rosto de um guerreiro moldado em terracota.

Tendo pesquisado sobre esse achado, Towell se apropriou do factual e transpôs para as imagens cinematográficas uma poderosa metáfora: aquela face estatuária milenar, surgindo entre pelos macios de pincéis, parecia interrogar os olhos dos homens do século XX que a miravam extasiados.  Ali estava um índex da nascente China imperial. É um momento memorável do documentário.

O nariz de terracota foi a ponta de um iceberg que mostraria meses depois não apenas um mas cerca de oito mil guerreiros, 520 cavalos, 130 carruagens de guerra, centenas de armamentos. Tudo em tamanho natural, ocupando espaço subterrâneo estimado inicialmente em 200 mil metros quadrados.  As dimensões épicas do conjunto causaram perplexidade no mundo acadêmico e fora dele. Historiadores e outros especialistas convocados deram seu parecer sobre a fantástica descoberta, que se igualava em importância à de Pompeia, na Itália do século XVIII.

Desde então os guerreiros e seu fascínio povoaram publicações científicas e ficcionais, livros, filmes e documentários. Este de que falamos resgata dados já conhecidos e agrega novos, enquanto vai se construindo sobre duas linhas paralelas. Uma é a das imagens mostradas com sua impressionante nitidez. Do soldado raso com sua flecha ao general com suas insígnias, lá estão as estátuas de expressões únicas, trajando uniformes diferenciados de acordo com a hierarquia, oferecendo uma mostra do poderio militar do império chinês no período de sua fundação. A outra é a que se conta através de uma mitologia, ou seja, a crença na vida após a morte: todo aquele exército ali estava para proteger o soberano Qin. Entre uma comunicação e outra, a intersecção que se adivinha, ou seja, a crueldade e violência vigentes quando se tratava de manter o poder, especialmente a partir desse primeiro imperador que ascendeu ao trono aos 13 anos de idade e morreu no ano 209 a C.

Coube-lhe o feito de agregar diversos vilarejos unificando-os na grande nação chinesa; desbravar caminhos para o interior montanhoso e inóspito; construir a primeira parte da Grande Muralha. Mas é necessário que se diga que ele não hesitou em penalizar com a morte parte de seus súditos para alcançar objetivos megalomaníacos, um deles a construção do colossal exército de terracota, iniciado tão logo assumiu o trono. É de se crer que milhares de artesãos e outros trabalhadores tenham perdido suas vidas nessa tarefa. Deslocar-se para recolher argila, manter fornos acesos o tempo todo, moldar as oito mil peças com precisão e cuidado, conferindo a cada rosto uma fisionomia singular- isso ainda hoje, com todos os avanços tecnológicos conquistados, seria tarefa dantesca.

Prontas as estátuas, colocar os guerreiros em posição de sentido era garantir que o imperador fosse acompanhado por sua guarda leal quando morresse e se dirigisse para nova morada. Aos guerreiros caberia a responsabilidade de protegê-lo e lhe garantir poder e glória na eternidade. E foi assim, alinhados em três diferentes trincheiras, que o mundo viu os guerreiros através de jornais, revistas e canais de televisão. Expostos à visitação, só depois de 2000, quando autoridades chinesas se decidiram a mostrá-los além de suas fronteiras. Até o Brasil foi contemplado com uma exposição na OCA, em São Paulo, que exibiu três estátuas durante três meses de 2003. Até hoje lastimo profundamente ter perdido esta oportunidade de vê-los.

Na China, o complexo dos guerreiros é dos mais visitados do país. Mas é preciso frisar que quando encontradas, as estátuas não estavam íntegras como a China as exibiria depois. Muitos troncos se achavam partidos, cabeças decepadas, membros superiores e inferiores deslocados. Ainda não se sabe ao certo o que aconteceu, se algum terremoto ou ataque de inimigos da dinastia foram responsáveis pela mutilação de metade do exército. Custoso e demorado trabalho de restauro envolveu várias equipes de especialistas, até que o conjunto pôde ser exibido em toda sua magnificência.

A propósito, o túmulo de Qin, onde trabalhavam os arqueólogos quando chamados para ver o nariz de terracota, continua em escavação, processo lento que agora tem à frente Jian Wenxiao, um dos nomes mais renomados na área. Estima-se que abrigue outros tesouros inestimáveis, como artefatos que revelem ainda mais sobre a China do período e ratifiquem o que disse Heródoto (485-425), o pai da História: “É preciso conhecer o passado para compreender o presente e preparar o futuro.”

Em tempo. A frase do filósofo grego vale para as civilizações e as pessoas. Narizes de terracota podem ser metáforas para aquilo que emitimos o tempo todo ainda que de forma inconsciente. Freud ensinou que nada fica escondido nos subterrâneos, pois comunicamos por todos os poros tudo o que nos habita e conforma.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras