Com duração de dois dias, 6 e 7, aconteceu no mês de abril, na Universidade de Harvard, a Brazil Conference, evento presencial e com transmissão ao vivo por meio do Youtube. A iniciativa da comunidade brasileira de estudantes que vivem em Boston completou dez anos. Seu objetivo, desde o início, foi atrair cada vez mais atenção global para o nosso país, impulsionando o desenvolvimento por meio de inovação, discussões e colaboração.
Transparência, ética, integridade e ousadia intelectual estão entre os valores dessa construção coletiva que leva em conta pontos de vista e contribuições de diversas regiões, culturas, contextos socioeconômicos, posições políticas, gêneros, etnias, orientações sexuais, capacidades físicas, e outros. Comentando o evento deste ano, a pesquisadora Marta Celestino afirmou que “o movimento diz respeito à desconstrução da ideia de supremacia branca imposta pelo racismo estrutural. É a normalização da diversidade étnico-cultural.”
Seis palestrantes marcaram presença na renomada universidade discursando sobre a importância de as pessoas lutarem por espaços de igualdade. Foram eles: Edilene Lobo, primeira mulher negra a integrar o Tribunal Superior Eleitoral; Lutana Kokama, líder indígena; Ernesto Batista Mané Junior, personalidade influente nas áreas de política e governança; Reginaldo Lima, morador do Complexo do Alemão que aprendeu a ler catando lixo e se tornou historiador; Artur Abrantes, formado em Economia em Harvard; e Valdeci Boareto, um gari que escreveu um livro e conseguiu vê-lo voar.
O livro tem título longo: “Comportamento que te salva- a vida sob o olhar de um gari que só quer respeito”. Nele, o escritor conta em textos curtos mas densos sua trajetória de vida na cidade do Rio de Janeiro, uma das mais violentas do país, trabalhando na limpeza urbana, profissão de risco, desvalorizada, destituída de qualquer glamour, mas de importância incalculável para a saúde e bem-estar públicos. Não é possível pensar numa cidade sem garis.
Um dos relatos é pungente pelas circunstâncias e pelo que revela do estado emocional de grande parte da população que transita de forma anônima e quase invisível pelos espaços públicos das metrópoles. Conta Boareto que era começo de manhã e ele estava limpando, com seus colegas, um viaduto da cidade (maravilhosa). Tinham acabado o serviço e ficado satisfeitos com o resultado: “tudo limpinho”. Foi quando apareceu um homem, que não era morador de rua, “pois estava até bem vestido”, e urinou no chão que os garis haviam terminado de lavar. O gesto provocou em Boareto um sentimento de angústia, porque o infrator urinava e olhava para os trabalhadores, como se os desafiasse.
A mangueira ainda ligada estava nas suas mãos, o que ensejou reação de populares que, tendo acompanhado a cena, se indignaram e gritaram para que o agressor fosse punido com jatos de água. O gari respirou fundo e tomou outra decisão. Pediu ao colega que desligasse a mangueira e aproximando-se lentamente do homem, lhe perguntou com calma por qual motivo tinha feito aquilo. Sem obter resposta, depois de uns segundos prosseguiu: “Estou fazendo isso aqui para a sociedade, para você também. Isso que você está fazendo não é normal. Conta para mim o que está acontecendo.” Então o homem desabou a chorar.
Como essa, outras histórias do livro, que levou o autor para falar em Harvard, trazem implícitos sentimentos de empatia e resiliência, de busca por paz em lugar de guerra, de disponibilidade para ouvir e considerar o outro. Também alguma pitada psicológica: “Independente do que você faça, sempre vai encontrar, de alguma forma, alguém que vai urinar naquilo que você limpou com tanto amor e carinho”. Verdade mais cristalina haverá?
Boareto tem olhar de escritor, atento aos detalhes, curioso pelo que vê à sua volta e o surpreende a toda hora. Ele é antes de mais nada um ser humano de muita coragem, cujo sorriso de menino contrasta com os cabelos e barba já grisalhos. Carioca que frequentou a escola com outros quatro irmãos também por conta da merenda, pois em casa a comida era pouca; e que buscava no Ceasa alimentos descartados no final do expediente, o que lhe rendeu o apelido de “Xepa”, ele filtrou de suas experiências difíceis uma aprendizagem para a vida, e quis compartilhá-las com leitores. Precisou lutar pelo sonho de escrever, publicar, ser lido e compreendido.
O livro fez sucesso e ele já recebeu propostas para edições em francês e alemão. A palestra em Harvard agradou e ensejou convites para apresentações em outros lugares. E ele já tem material para segunda publicação, essa para crianças, com o necessário tema do meio ambiente.
Escrever é trabalho exigente. Publicar, sobretudo o primeiro livro, não é fácil. Divulgá-lo pede energia, paciência, dedicação. Mas quando tudo se cumpre, o resultado geralmente gratifica a alma e expande a vida. O trânsito de um título é algo misterioso que pode trazer grandes mudanças à vida do autor. Boareto, por exemplo, que só tinha feito na vida uma viagem curta a Minas Gerais, e nunca havia andado de avião, voou direto até os EUA, na companhia de brasileiros lutadores como ele. É um exemplo vivo de que o sonho pode se tornar realidade e de que, aos poucos, não-brancos vão conquistando autonomia, liberdade e projeção positiva num país onde o preconceito de raça, de cor e de posição social ainda é ferida que não tem data para cicatrizar.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras