16 de julho de 2024
NOSSAS LETRAS

Só dez por cento é mentira

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 5 min
Reprodução

Publicações dedicadas à literatura brasileira já começaram a resgatar biografia e obra do mato-grossense Manoel de Barros, cuja primeira década de morte está sendo lembrada neste ano. Já aparecem artigos, resenhas, críticas em jornais e revistas sobre o poeta falecido em 2014 e cujo legado é um tesouro pela temática original e estilo único.

Mas como ele tinha ojeriza por câmeras, e só concedia entrevistas se fossem por escrito, o único documentário disponível é o do cineasta Pedro Cezar, cujo trabalho custoso de convencimento para que o mestre se deixasse filmar merece aplauso. É graças a esta bem-sucedida iniciativa que os amantes da literatura, especialmente os que elegem Manoel de Barros um dos maiores poetas brasileiros do século XX, podem se deleitar com o filme disponibilizado pelo canal Netflix, “Só dez por cento é mentira”- título subtraído de um dos poemas do autor : “Preciso confessar uma coisa/ Noventa por cento do que escrevo é invenção/ só dez por cento é mentira.”

Durante noventa minutos que passam rapidamente, graças à arte do documentarista e à graça encantatória do documentado, torna-se possível ao espectador conhecer parte do mundo pelo qual transitou o poeta, que além de escrever ilustrava seus livros criando capas singulares. Mesmo quem não tenha lido sua obra será emocionalmente afetado pela inventividade da mente do artista, singrando por um universo de associações inesperadas, desvelamentos súbitos, insights surpreendentes, conexões extraordinárias e epifanias poderosas. De minha parte confesso que ao terminar de assistir ao filme me senti inundada por um estado superior de poesia que me infundiu leveza. É que ao conferir importância a coisas que geralmente passam despercebidas, Manuel de Barros desperta no leitor um estado de criançamento da alma e dos vocábulos, propósito que já aparece em um de seus primeiros livros, “Memórias Inventadas”:

"Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma."

As palavras por ele recuperadas, lavadas, escovadas, restituídas ao seu estado de novas, não apenas transformam alguns leitores; há os que dizem terem elas o dom para curar olhos doentes de cultura, um estado de espírito fixado pelo autor em “Narrador Apresenta Sua Terra Natal”: "Quando meus olhos estão sujos da civilização, cresce por dentro deles um desejo de árvores e aves. Tenho gozo de misturar nas minhas fantasias o verdor primal das águas com as vozes civilizadas."

As imagens do documentário remetem o leitor de carteirinha para algumas reiteradas explicações de Manoel de Barros sobre seu processo criativo, que ele não atribui à inspiração, algo que diz desconhecer, mas se funda no toque profundo que vocábulos e coisas lhe despertam, levando-o a um duro trabalho de conexões internas que frutificam poemas. Lata de sardinha boiando numa poça, pedaço de arame farpado enferrujado, pedrinhas miúdas, folhas secas tocadas pelo vento, pneus, fivelas, o prendedor de roupas no varal, garrafas vazias e centenas de outras coisas inúteis são motivações para que a poesia seja apalavrada. Aliás, para o velho poeta de calças claras, camisa leve, boina marrom sobre cabelos brancos e fartos, “Poesia é a virtude do inútil. Poesia a gente não descreve, a gente descobre. Poesia é um canto com gorjeio. É artesania. É o belo trabalhado.”

Algo similar ele havia dito quatro anos antes do documentário, em 2007, à revista “Caros Amigos”: "Aprendi que o artista não vê apenas. Ele tem visões. A visão vem acompanhada de loucuras, de coisinhas à toa, de fantasias, de peraltagens. Eu vejo pouco. Uso mais ter visões. Nas visões vêm as imagens, todas as transfigurações. O poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre dessa mesma."

Uma atriz convidada para o documentário diz: “Manuel de Barros liberta os objetos de sua função prática”. O crítico de arte afirma: “Ele se opõe à tradição grandiloquente da poesia brasileira que olha para o céu; ele olha para o chão”. Celebrada artista plástica de renome internacional faz pergunta enfática: “Como nunca me apresentaram Manoel de Barros?”

Entre uma opinião e outra de admiradores, o poeta entrevistado relembra  o menino solitário que na infância não tinha com quem conversar; o adolescente que nos fins de semana permanecia no colégio marista pois ninguém o buscava para um passeio; a importância de um padre que numa dessas ocasiões lhe indicou a leitura dos “Sermões” de Antônio Vieira, o que o leva a descobrir o talento para a escrita: “é para isso que eu presto”;  a decisão na vida adulta de permanecer dez anos na sua fazenda do Pantanal até que pudesse adquirir autonomia financeira para então se dedicar inteiramente à literatura e dizer: “De dentro de mim não saio nem para pescar.”

Ao reunirem imagens e versos, o diretor do filme e sua equipe transpuseram para a linguagem cinematográfica o manuelês, idioma singular cujos léxico e sintaxe registram o que faltava na poesia brasileira: um jeito novo de olhar o mundo porque “as coisas não querem ser vistas por pessoas razoáveis/ elas querem ser vistas de azul”.

Tocada por este documentário maravilhoso, estou sentindo grande desejo de ir a Campo Grande, cidade que não conheço e terra natal do poeta, para ver o museu onde estão os caderninhos, dezenas, feitos por ele mesmo, onde escreveu à mão toda sua obra em caligrafia miúda de menino que chegou aos 94 anos dizendo: “Eu só sei falar é da infância.”

PS- Um poema de Manoel de Barros:

Borboletas
O privilégio insetal de ser uma borboleta me atraiu.
Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas.
Eu imaginava que o mundo visto de uma borboleta seria, com certeza,
um mundo livre aos poemas.
Daquele ponto de vista:
Vi que as árvores são mais competentes em auroras do que os homens.
Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens.
Vi que as águas têm mais qualidade para a paz do que os homens.
Vi que as andorinhas sabem mais das chuvas do que os cientistas.
Poderia narrar muitas coisas ainda que pude ver do ponto de vista de
uma borboleta.Ali até o meu fascínio era azul.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras