24 de dezembro de 2024
NOSSAS LETRAS

Ninguém

Por Vanessa Maranha | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 6 min

Alguém era o neto da avó Dinorah que durou muito tempo, mas, decidiu um dia não mais viver.

Para ela, a vida andava pesada, e quando se deu conta de que irremediavelmente se cansara de tanto estar nas circunstâncias, não pediu permissão a ninguém, nem mesmo ao marido Bento para desistir:  arrumou-se, vestiu boa camisola, deitou-se na cama e fechou os olhos. Dez dias depois, faleceu.

Alguém era agora, então, filho da mãe.

E essa mãe, fria feito uma salamandra, trabalhava como doméstica em casa de gente rica para onde ela eventualmente o levava. Uma vez, Alguém ouvira o patrão da mãe aconselhar ao filho, aprendiz de fariseu, em tom de confidência grandiloquente:

- Alimente-os. Dê comida mesmo, algum restaurante que normalmente não possam frequentar, acima das suas possibilidades. Mostre-lhes as tais possibilidades que nunca alcançarão, mas é bom que acreditem podê-lo. Depois de refestelados, então, deixe que voltem para a aridez dos seus desertos. Pela boca você os terá leais e interesseiros, ingratos e humilhados, à sombra da soberba e da cobiça e da culpa manchando-lhes a vista. Que o ser humano se move basicamente pela vontade de ganhar e pelo medo de perder. Mas, não pense que não haja, de lá, fúria.

Anos depois, Alguém estava num restaurante, sempre os restaurantes nos denunciando em tubos gástricos ambulantes, insaciáveis. Pois lá estava ele na fila do self service e, à frente, dois jovens típicos, calças justas, pernas finas, peitos largos, a supinização da vida – cabelos semi raspados e topetes, cavanhaques cerrados para denotar masculinidade enfim oblíqua nos seus olhares; algo de infantil, arrogante e assustado, ao mesmo tempo. Eles falavam entre si coisa nenhuma, um amontoado de frases feitas, palestrinhas, tossiam deliberadamente sobre os pratos de comida na pista, perdigotos, micropartículas de saliva, pedaços de si pairando invisíveis ali. E quando um se calou, o outro começou a assoviar desafinado, ventando sobre os alimentos que outros comeriam. Como se a vida pudesse ser levada aos modos de seus games. Mas, Alguém que atentamente acompanhava tais movimentos, achou aquela feiúra bonita, um jeito possível de responder, de existir, ainda que de forma vicária; pareciam donos de si, e pensou que assim estava bem, encontrava aqui um modo, enfim.           

No outro dia, empregou-se na cozinha do mesmo restaurante. Diligentemente trabalharia ali diante da pia, lavando pratos e panelas, fermentado na raiva sorridente que aprendera com aqueles dois jovens, em ódio-obrigação de felicidade e mansidão, sorrateiramente, olhos ruins, garganta sufocada, sabedor de que ali não iria muito mais além da lavação de pratos. Alguém arquitetava então deixar cair sobre as panelas fervendo, suas carnes cozinhando, sobre molhos os bolores que raspava das paredes; nojeiras várias pacientemente amassadas para que delas não restasse visibilidade, apenas os malefícios.

Viera ao mundo, aprendera com os rapazes que vira na pista daquele restaurante, para contaminá-lo, metodicamente destruí-lo, olhava da boqueta entre a cozinha e o salão de serviço os comensais, gente cheia de arrebiques e perequetés, suas risadas deslavadas de quem não olha para baixo e nem para os lados, sua soberba, sua cadelice. Enviar a esses tais, portanto, pequeninos acenos de morte, alguma antecipação, azia, estômago ruim, diarreias, gastrites, pedacinhos de soda cáustica seriam uma sofisticação para o avanço da corrosão. Duas gotas de detergente engolidas diariamente, ouvira dizer, abreviavam a vida de qualquer ser vivo.  Sem fala nem mediações, fazia-se anômalo, a coisa crescendo dentro dele: não mais conceber que alguém passasse pela sua existência sem incorporar algo de si ou do mundo.

Um dia acordou em sanhas de destruição: gosma de lesma cirurgicamente retirada de caracóis catados em canteiros de rua, restos de ratos, asas de baratas moídas, feitas pó no multiprocessador. Sêmen, quando conseguia.  Nem mais reconhecia se ódio, sina ou hábito. Prover a sua marca. Tão natural e corriqueiro isso passou a ser, que Alguém experimentava ele também dos pratos adulterados para irmanar-se, fazer-se legião, grupo, parte de.

Ninguém sabia do contrabando de bactérias, vírus, fungos de que Alguém fosse capaz de carregar para entrar no dia ou na noite. E quanto mais grosso e exigente o cliente que devolvia pratos para rearranjos na cozinha, maior a punição, os micro venenos nas crostas raspadas do chão, do limo na pia, gotas de água do vaso sanitário, excreções corporais fracionadas em minúsculas porções, e a afirmação silenciosa que falava sem dizer: pensa que só você fode com a vida dos outros? Você não me vê, mas estou em você.

 Alguém saía de madrugada do trabalho menos derrotado, menos ínfimo, seu pequeno e invisível poder, seu jeito de estar nos outros, seu modo calado de xingar e maldizer a vida de merda que o trazia até aqui, nesse feitio. Chegava na casa que era quase uma ruína, edícula de um quarto, piso vermelhão descascado, janela enferrujada, a caixa de gordura quebrada levantando odor nauseabundo de ranço e esgoto para dentro dessa casa com quase nada de mobília.

Alguém não tinha mais ninguém, exceto pelo avô Bento.

Na família de Alguém, esse avô comemorava, anualmente, com mesa de bolo, balas de coco, salgadinhos, parabéns a você, vela e balões o aniversário de Dinorah, sua esposa, avó de Alguém morta havia 15 anos. Fazia questão da festa à defunta todos os anos, era espiritualista, inclusive, deixava a cadeira vazia para que a nataliciante pudesse espaçosamente aproveitar o seu dia. Alguém sempre esteve em todas essas ocasiões.

Quando viva, quando ele também vivo, olhava para a avó e sempre vira a eternidade. E a mãe que o nomeara assim para ele, literalmente, se fazer alguém importante na vida e a quem estivera tutelado após a ida da avó, falhara também na ideia do eterno e falecera havia um ano, uma septicemia.

Só conseguira ser esse Alguém periférico, calado, predatório, invisível porque no mais das vezes que tentasse figurar o que ou quem apenas pudesse ser, não divisava o que de fato poderia significar esse tal Alguém sonhado pela mãe.

Ser alguém era ser como?
1-      Casado
2-      Rico-milionário
3-      Rei dos outros
4-      Influenciador
5-      Policial
6-      Proprietário
7-      Tudo junto
8-      N.D.A

Mãe não ensinara o que Alguém pudesse ou devesse ser exatamente. Ensinara-lhe alguns nãos.

Que não falasse muito alto, que passasse despercebido, que não fosse respondão, engolisse palavras feias, sem vazão. Sem autopropaganda.

A falha na fala.

Alguém não aprendera a se relacionar, sem sequer nomeação que o distinguisse, passara invisível e inaudível pela infância e adolescência chegando indistinto à vida adulta.

Pensara que bem poderia se aplicar a inventar venenos em formas narcóticas ou letais, prazer e morte nas suas mãos, Leonardo Da Vinci fora exímio produtor de venenos, lera em algum lugar.

Pesquisara guerras químicas e bacteriológicas, antraz, interessado pelo que não se vê. Chegara mesmo à sofisticação corrosiva do ácido para além da soda, que lhe desfizera as digitais e mordiscara as pontas dos dedos.  Foi então que, indômito, numa manhã azul, após uma noite de orgias microbióticas raspadas de todas sujidades possíveis, restos orgânicos, escarros, suor, laxativos, cera de ouvido, tudo invisibilizado para descer bocas abaixo, que uma das habituais inoculações retirada da caixa de ovos carregada em guardanapos se despregou de seu invólucro e pelas tramas do tecido do bolso da sua calça encontrou um ferimento em Alguém, como porta de entrada para o corpo. Insidiosamente a coisa caminhou pelos seus dutos, primeiro provocando dormências, depois, dores por todo o sistema adoecido e, então, morada incômoda em si, uma paralisia progressiva dos músculos.

Da tal caixa de ovos lhe entrara o botulismo, seu tenaz embotamento e, finalmente, era chegada a sua hora tremenda.

Morreu sem sequer ter nascido.

Vanessa Maranha é psicóloga e escritora