Comecei recentemente a assistir no YouTube aos vídeos de dona Vera, brasileira de 60 anos que vive no campo, em algum lugar de Minas chamado Chácara Cristal. Vejo-a como herdeira de uma tradição culinária que remete à nossa história, aos primórdios da colonização. Sou apaixonada pelo tema e escrevi a respeito no livro “Prosa à mesa”, onde resgato a origem de pratos à base de milho e mandioca, in natura e subprodutos. Por longo período grãos e raízes sustentaram a gente que estava buscando ouro e pedras preciosas, derrubando matas, abrindo estradas, lidando com plantio, cuidando do gado, morando em casas de pau-a-pique na roça ou nos arraiais, onde brotavam timidamente as cidades brasileiras.
Dona Vera, como milhões de outras mulheres e homens do nosso país, guarda na lembrança um passado que é dela e ainda mais de seus pais e avós, invocados reiteradas vezes. Eles fizeram parte dos que engrossaram o êxodo rural iniciado nos anos 50, quando o Brasil mantinha no campo 70% da população. Memórias gustativas e olfativas são poderosas e, por isso, os vídeos de dona Vera já alcançaram 500 mil seguidores, o que ela comemorou modestamente. Vídeos ainda não podem oferecer a experiência do paladar, do olfato, mas a maneira como ela manipula ingredientes e descreve o que está cortando, temperando, refogando, assando ou guisando desperta nossos sentidos.
Sua cozinha é um exemplo de limpeza, ordem e arejamento. Não tem cortininhas, nem louça chique, muito menos talheres de prata. De sousplats, nem sonho. Toalhas, poucas vezes. Os panos de prato são pra lá de singelos. Por outro lado, o espaço oferece ampla abertura para o verde, a chuva, o vento que balança galhos de arbustos, o sol muitas vezes inclemente. Se faz calor, dona Vera vai lá fora e busca alguma fruta para fazer vitamina. Os netinhos dela, que são três, adoram. Também gostam de uns bolinhos de amendoim que lembram cookies, levados para merenda na escola; de biscoitos de polvilho salgados ou doces, de todos os tamanhos; de bolo de rapadura, antigamente chamado bolo de pobre porque, como conta a avó resgatando sua infância, “naquele tempo a gente tinha pouca coisa em casa, então fazia bolo com o que havia- o melado da rapadura, ovos recolhidos no galinheiro, coalhada e fubá”. Fino ou grosso, o fubá não faltava; nem falta na cozinha do presente que também tem polvilho doce, produzido por ela mesma com as mandiocas cultivadas na horta.
Ressalte-se que existe de tudo um pouco nessa horta-pomar: abóboras, berinjelas, jilós, alface, almeirão, salsinha, cebolinha, quiabo, pimentão... Pés de abacate, de mamão, de limão, de fruta-do-conde, de frutinhas vermelhas parecidas com mini maçãs, às quais, como mineira autêntica, ela chama de “trem” por ignorar o verdadeiro nome. Só não tem chuchu, e não se sabe por que razão essa trepadeira fácil de vingar e produzir não vai pra frente naqueles redutos. Arroz, feijão e café vêm de fora ou são obtidos por troca, num tipo de escambo do qual ela já falou num dos vídeos: “Antes não tinha dinheiro, era troca, e vivia todo mundo bem, sem desavenças. Um cadim de banha por um tantim de rapadura, umas espiga de mio granado por um litro de fubá.”
No fogão onde a lenha seca faz crepitar chamas sem dar tréguas, centenárias panelas de ferro mostram feijão de caldo vermelho e grosso, arroz branquinho e solto, polenta mole, banana frita em rodelinhas, pedaços de carnes de porco ou de vaca cozidos, frango em molho amarelinho, bom para colocar em cima do arroz. Ou então para despejar num prato fundo e derramar farinha de mandioca sobre, obtendo um pirão molinho que deve ser comido com colher. Macarrão não pode faltar porque as crianças gostam muito. O preferido, mal sabe dona Vera, é surpreendente desconstrução do espaguete à carbonara dos italianos: bacon frito numa chapa colocada sobre a boca do fogão, ovos quebrados por cima na medida de um por comensal, pimenta-do-reino, por fim o macarrão cozido na trempe de traz, escorrido e agregado ali mesmo, na chapa, onde é mexido para que tudo fique bem misturado mas não amassado. O queijo, que ela ensinou como manter curado com sabugo de milho, nesta hora já está ralado numa tigelinha.
Se você, leitor, leitora, está se perguntando como essa mulher tão simples chegou à Internet, eu conto. Foi o filho dela, que querendo mostrar aos netos como a vovó ficaria num vídeo, gravou sem nenhuma pretensão. Fez tanto sucesso que não deu outra, os vídeos passaram a ser semanais. E agora estão sendo monetizados, para alegria de toda a família, que retornou ao campo quando um negócio tocado na cidade faliu.
A mulher de energia imensurável levanta com o nascer do sol e segue trabalhando até a noitinha. No final de todos os dias, inclusive domingos, (pois plantas não conhecem dias da semana!), destina 40 minutos para regar a horta, retirar folhas secas, carpir o mato que “cresce muito na época da chuva, mas a gente precisa da chuva”. Em geral a vemos junto ao fogão ou à pia, mas quando a câmera a apanha por inteiro, percebemos que sua perna direita manca. Algum seguidor indiscreto perguntou a respeito e ela respondeu mostrando duas chapas de Raios X para explicar que aquilo tinha sido erro médico: colocaram nela uma prótese errada que lhe causou muitos danos e quase a levou à morte: “mas não me queixo; vivo bem com a perna assim, sou muito feliz em poder fazer tudo o que faço”. Sua expressão serena não a desmente.
Dona Vera não só faz o trivial como recria comidas já quase desaparecidas do mapa gastronômico de Minas. Como um biscoito que viralizou na internet. Simples, econômico, prático, gostoso demais. “Minha avó fazia com ingredientes baratos para que todos comecem antes de partirem para a lida.” Trata-se de uma massa de polvilho, água, óleo, ovos e sal, semelhante a uma massa fininha de panqueca. Estendida numa assadeira untada e levada ao forno quente por quinze minutos, o resultado surpreende porque forma enormes bolhas irregulares que parecem montanhas. Da primeira vez que fez o tal biscoito para os netos, perguntou ao menino mais velho: “Que nome você dá para esse biscoitão?” E ele tascou: “Montanha russa.” A partir de então, famosos e anônimos reproduzem a receita e o postam na internet. Sem dar o devido crédito.
Conectada consigo, com os seus, com o que acontece ao redor, com a natureza, com os alimentos que a terra oferece para o sustento dos que a cultivam, ela me lembra a mãe de Adélia Prado na sua singeleza profunda. Não sei se tem conhecimento das guerras que neste instante matam homens e mulheres, jovens e crianças, até bebês. Ou se lhe chegam notícias onde o mal leva a melhor sobre o bem. Desconheço seu nível de percepção sobre humanos que moram nas ruas em número cada vez maior ou sobre o que fazem os políticos eleitos por gente como eu, você, ela.
O que posso dizer do que vejo e intuo, do meu ponto de vista de mulher urbana, é que estamos diante de uma pessoa que representa milhares de outras que constroem suas vidas no campo, de forma modesta e constante, honrada e bela. Tranquila, dinâmica, alegre, com pitadas de filosofia em legítimo mineirês, deu um salto para a modernidade sem perder a essência. Conversa agora com seus milhares de seguidores a quem mostra uma comida simples, saudável, brasileira. Seus pratos não têm um pingo de gourmetização, mas são profundamente genuínos. Como ela, cujo nome não poderia ser outro: Vera, verdadeira.