No seu livro “Viagem a Portugal”, o escritor José Saramago esclarece: “O viajante não é turista, é viajante. Há grande diferença. Viajar é descobrir, o resto é simples encontrar.” Fernando Pessoa, em prosa, considera: “As viagens são os viajantes. O que vemos não é o que vemos, senão o que somos.” Os dois escritores, da altura a que alçaram, sugerem que todas as jornadas guardam surpresas e mistérios que o viajante só descobre no caminho.
Pensei nesses nomes luminares da literatura portuguesa em vários momentos da leitura de “Terra em Canto”, de Regina Helena Bastianini, lançado em dezembro de 2023. Trata-se de um conjunto de crônicas e poemas cuja unidade repousa no registro lírico de viagens feitas pela autora ao interior do Brasil e também ao Exterior. Nos caminhos que percorre, entregue de coração, ela deixa a impressão de que quanto mais longe vai no deslocamento físico, mais perto fica de si. É como se respondesse à pergunta presente logo no início do segundo texto, “As Pontas do Caminho”: “Uma das coisas que me seduzem é tentar resgatar as memórias mais recônditas de minha vida. O que se passa em um ser ao abrir-se para o mundo?” Respondendo a si mesma, continua: “O que de melhor consigo nessas tentativas são sensações, penso que de espanto e deslumbramento diante de coisas que, cada vez mais, me parecem grandes e misteriosas.”
Descrever sensações é desafio gigantesco. Regina Helena Bastianini responde a ele valendo-se do seu imenso repertório linguístico, do vasto conhecimento semântico, da leitura de autores renomados e, claro, antes de mais nada, da incomum sensibilidade de poeta e prosadora.
Algumas das sensações beiram a epifania, como a experiência vivida no interior da Gruta de Maquiné, interior de Minas Gerais: “Entrei, inocente. O que vi não sei dizer. O que senti foi um turbilhão. Estava no seio da Terra, dentro do Absoluto e soube a vontade de Deus plasmando o mundo gota a gota. Envolvida por aquela catedral de estalactites e estalagmites, experimentei, com estranha sensação de paz, o pânico de uma inexistente falta de ar e o êxtase diante de uma beleza e de uma atmosfera que só consigo relembrar como irreais.”
Outras sensações são proustianas, no sentido de que a autora tenta pela via da memória recuperar algo que a retina registrou e ecoa intensamente em algum lugar da alma, como acontece em “Impressões”. Neste pungente texto, a cronista procura descrever seu estado emocional ao avistar, do interior de um ônibus, que corta “estrada vermelha perdida na bruma gelada ao pé da montanha”, um vulto feminino: “Estava de costas para mim e caminhava com passos lentos e distraídos. Usava um vestido claro e, à distância, parecia leve, jovem e triste (...) A mulher se movia na atmosfera breve como os fantasmas que nos visitam em sonhos e se vão como vêm. Bem levemente, deixando resquícios a escorrer.”
A crítica à história escravocrata de nosso país comparece na medida em que o passado ribomba nas ruas calçadas com pedras das cidades mineiras erguidas no período do ciclo do ouro, relembrando enredos de escravidão, exploração, crueldade, desigualdade: “Cavalos magros e sofridos pisam as pedras e despertam o doloroso lamento dos negros que impregna cada canto desse labirinto de ruas, cada pedaço desse chão, cada milímetro dessas fachadas com eira, beira e sobreira, guardando mãos e dores dos sem eira nem beira.”
De vez em quando o olhar mira os turistas que “dificilmente veem além de portas e janelas, mesmo quando abertas”; “só comem, e bebem, compram, compram e compram”, e “(...) não precisam de outras pessoas, exceto para lhes satisfazer as vontades, e pagam por isso”. Mas como a escritora não viaja como turista, acaba desvelando o belo que é preciso carregar consigo, sob pena de não o fazendo deslegitimar o raro e o genuíno da descoberta. Por isso assim descreve seu sentimento dominante diante de Cordisburgo, a terra natal de Guimarães Rosa:
“Vivo um tempo e um espaço inefáveis que sabemos apenas em momentos especiais, quando a vida nos brinda com a possibilidade de vislumbrar o eterno e o inefável.” Linhas além homenageia o imenso escritor recortando-lhe frases de lirismo intenso: “... a debulha de trilos dos pássaros... pombas cinzentas guaiando soluços... o patativo cantando clássico na borda da mata e aqui ao lado um araçari que não musica...” E conclui: “Vivo as palavras de Guimarães Rosa que tento reter e guardar em algum lugar especial dentro de mim (...)”
Regina Helena Bastianini conseguiu reter e guardar não só as palavras de Rosa como a imagem carregada de emoções de Cordisburgo e de todos os lugares descobertos. Escalou montanhas, desceu aos vales, entrou em grutas, molhou os pés em verdes mares. Encontrou homens, mulheres, crianças. Sentiu as brisas e ouviu o minuano. Visitou igrejas barrocas. Andou pelas praias do Rio. Cortou estradas. Voou e chegou ao centro de Havana. Voou de novo e colocou os pés em São Petersburgo, Moscou, Berlim. E ao atravessar o Portão de Brademburgo poetou assim, desejosa de “um supra idioma para a Poesia”:
“Então, talvez eu tivesse como dizer: / A Praça Vermelha/ O Kremlim/ A Catedral de São Basílio/O Rio Moscovo/ A Rua Arbav/ Que eu vi, vi, vi, vi, vi.../ Com olhos brasileiros/ Pensando em português/ Sentindo com coração/ E lágrimas vermelhas/ De gratidão/ E tão desejosa de esperanças.”
Turista reúne fotos. Viajante, fatos. O primeiro, mostra (agora, no celular). O segundo, conta (aos amigos e leitores). Viajante de olhos abertos, ouvidos aguçados e grande condição de análise, Regina reuniu em palavras o que sua percepção capturou e levou tudo para “Terra em Canto”, livro cujo estilo está marcado por metáforas frescas e frases de grande impacto como “intimidade mineral das montanhas”; “a brutalidade de penhascos e precipícios e pedras; “pelos caminhos da alma, passos da vida derramam o agridoce de tempo”; “o violeta vai subindo a serra e só uns traços laranja agonizam no escuro que ainda é azul já espalhando estrelas”; “fiquei ali perdida em páginas do passado e de papel”. Etc.
A cada novo lançamento desta escritora admirada e respeitada, além de querida, o leitor é levado a reconhecer que ela alçou mais um patamar de excelência e o diamante que oferece aos leitores atingiu número de pontos superior ao anterior. Por isso o escritor Luiz Cruz de Oliveira lembra no prefácio que tem por título “Veredas”: “Terra em Canto” consegue superar os sagrados lambaris”, uma alusão ao livro “No Tempo dos Lambaris Sagrados.” Como escreve outro escritor, José Lourenço Alves, na contracapa, sua poesia, “revela pensamentos e sentimentos de um modo artístico, único e irrepetível”.
Movimentando-se de dentro para fora, e vice-versa, em “Terra em Canto” Regina Helena Bastianini transita por duas geografias- uma física, outra sentimental, com intensas intersecções. Uma delas a linda e delicada “Travessura”, um encontro de meninas. Lendo esta crônica, um quase conto, fica patente a generosidade oceânica da autora ao compartilhar experiências tão ricas em verdade e beleza. Em outros textos, sua sugestão para que olhemos o horizonte, uma das maravilhas do mundo, soa como convite à aventura de viver de maneira autêntica. Seu livro é dedicado “Aos que buscam caminhos” e este substantivo, “caminhos”, se espalha como sementes por várias páginas. Que germine no espírito dos leitores, desdobrando suas almas para novas e importantes descobertas, que são aquelas que nos ampliam como seres humanos.
PS- Muito bom o trabalho da Ribeirão Gráfica e Editora, responsável pela edição do livro e pela publicação da maioria dos autores francanos nos últimos trinta anos.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras