24 de dezembro de 2024
NOSSAS LETRAS

Vela ao vento

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 4 min

Sexta-feira, Paixão de Cristo. Olho para fora e sinto a noite escura e fria. A linda lua cheia, típica desse período no hemisfério sul, não apareceu radiosa. Permanece escondida por densas nuvens. Deve ter sentido vergonha dos habitantes de um planeta violento, perigoso, selvagem. O homem é lobo do homem. A frase de Thomas Hobes, que viveu no século XVI, faz cada vez mais sentido na contemporaneidade. Atos predatórios espocam onde menos seriam imaginados. 

Ao voltar para dentro e ligar a TV, minhas retinas capturam uma cena comovente. Trata-se de uma procissão, a do Senhor Morto. Uma criança segura vela envolta em papelão, talvez cartolina porque parece mais flexível. Cone invertido, a proteção é eficiente: o vento faz a chama bruxulear no breu mas ela não se apaga, continua iluminando o caminho e as fisionomias. As lágrimas de cera não queimam a mão da menina, que imita os que caminham contritos como ela, fazendo de vez em quando um gesto para desviar a brisa e assim manter o pequeno clarão. Ele contribui para, junto aos outros, formar o conjunto de luzes móveis. A procissão acontece em alguma cidade antiga e interiorana do nosso Brasil, desvelam os casarios onde gentes ocupam janelas compridas e exibem respeito na expressão contrita. Caminhando unidas e em silêncio, as pessoas de vez em quando param e rezam um pai-nosso, uma ave-maria, uma ladainha. É bonito e triste este momento estático que logo evolui de novo para o dinâmico.

Sem retirar os olhos da tela, penso em nosso século que nem atingiu seu primeiro quartel e já se mancha com o sangue das guerras. Uma delas, cuja crueldade de ambos os lados deixa atônitos os que mal acreditam no que veem, tem por cenário exatamente a região onde Jesus, o Senhor morto da Sexta-feira, nasceu e pregou. Casas destruídas, corpos dilacerados debaixo de pedras, crianças famintas, mulheres e homens depauperados em suas forças comovem o coração dos que ainda se deixam afetar pelo sofrimento alheio. Incontáveis faces, molhadas pelas lágrimas que vertem olhos judeus e muçulmanos (são bem poucos os cristãos por ali), mostram que tudo é dor, não importam religião e cultura.

Há muita dor neste mundo. As externas, bem visíveis nessas guerras declaradas; e as internas, que também fustigam os seres humanos. Na verdade, penso que ambas estão em relação de direta causalidade e tem na ética a sua raiz. É no que voltei a pensar depois de acompanhar uma live do professor Clóvis de Barros, filósofo brasileiro de linguagem clara. Ele falou sobre a ética revelada por Jesus Cristo aos homens de sua época e aos que vieram depois. Tendo a liberdade por fundamento, a igualdade por condição e a alteridade como princípio, essa ética foi, olhando em retrospectiva, uma novidade extraordinária para o pensamento ocidental. Aliás, antes dela, nenhuma outra similar, nem mesmo com os filósofos gregos, para muitos dos quais a escravidão era concebida como normalidade; a hierarquia, uma necessidade; a alteridade algo impensável, apesar dos Esopos.

A proposta de Cristo foi diminuir a dor do outro, ou pelo menos não a provocar. A vida que valeria a pena seria aquela do respeito mútuo, sintetizada num único mandamento: amar ao próximo como a si mesmo. É um desafio bem difícil. Acredito que nossa caminhada como humanos ainda precisará de tempo longo para que consigamos melhorar como criaturas de nossa espécie. A mensagem de Jesus chegou aqui há dois mil anos. É um tempo ínfimo diante da história. Temos muito a lapidar, pedra bruta que tantas vezes somos.

Para os que vão além do consumo do bacalhau e dos ovos de chocolate, a Semana Santa pode ser a oportunidade de repensar como estamos nos portando uns com os outros. Na nossa casa, no trabalho, na cidade, entre amigos, com desconhecidos. Quantas vezes fustigamos nosso próximo com chibatas invisíveis, condenamos levianamente como se fôssemos juízes impolutos, oferecemos vinagre a quem nos pede água, estocamos sadicamente lados sensíveis, nos negamos a ajudar a carregar uma cruz.

Mas a condição humana, com tantas escuridões, tem também áreas de luz.  Usando a vela metafórica chamada esperança, vamos tentar mantê-las iluminadas, lutando contra o vento que ameaça apagá-la e suportando as lágrimas que podem queimar. Que a cada momento escuro consigamos nos reerguer, repensar, refazer, reinventar. Renascer, enfim, em melhores condições. E não permanecer naquela área de infantilização do menino que tendo acompanhado mais uma vez a crucificação de Cristo, perguntou à sua mãe: “Mas se ele sofreu tanto o ano passado, por que voltou neste ano?”

 À mente infantil, pela incapacidade de abstrair, escapava o significado da ressurreição. Aliás, por diferentes razões, este sentido escapa também a muitas mentes adultas que se negam a enxergar as mortes e ressurreições simbólicas presentes na existência humana. Podemos viver de forma genuína se aceitarmos morrer para as coisas que não contribuem para nossa evolução. E com inteligência, criatividade e força, inerências humanas, renascer para usufruir da vida em plenitude.

Feliz Páscoa desejo à leitora, ao leitor.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras