24 de dezembro de 2024
NOSSAS LETRAS

De volta

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 5 min

Só quem enfrentou cirurgia de alta complexidade pode entender os fantasmas que assombram os pacientes antes da entrada em centro cirúrgico. O corpo humano, que religiosos definem morada da alma e a ciência considera desde há alguns séculos uma máquina, tem seus mistérios gozosos, luminosos, dolorosos e gloriosos. Quando tudo funciona bem, não nos damos conta da perfeição dos movimentos de cada órgão, sua conexão com o todo, a maravilhosa engenharia que conecta uns a outros. Mas, se algo começa a falhar, a consciência de que somos muito frágeis e finitos vem com força à tona.

Ter alguma parte do corpo cortada, remexida, costurada é hipótese que ao se tornar realidade nos assusta. Pois um bisturi pode definir nosso destino em milésimo de segundo. É a mão firme do cirurgião competente que guia o instrumento em favor da vida. Evitadas as hemorragias, que retiram o sangue do seu leito natural, outros fatores internos e externos podem inesperadamente colocar em risco nossa existência: coágulos que bloqueiam o curso do sangue; bactérias que encontram o nicho oportuno; sistema de defesa que se confunde diante de um novo elemento.  Assim, ainda que enquanto pacientes tenhamos cumprido todo o protocolo de consultas com anestesistas, infectologistas, cardiologistas etc., não temos certeza absoluta de que nosso corpo está perfeitamente preparado para as incisões, as serras, a aceitação (no meu caso) de uma prótese de titânio no joelho direito. Senti muito medo- antes, durante e depois. Mas a esperança se sobrepôs.

Por anos sofri dores atrozes e protelei a minha decisão pela cirurgia até chegar o momento em que me pareceu evidente que se não a enfrentasse iria para a cadeira de rodas. Escolhi o médico após ouvir relatos de homens e mulheres que me estimularam a tomar a decisão, já que bem-sucedidos na operação (como se dizia antigamente) que lhes havia suprimido as dores e devolvido autonomia. Entreguei-me aos cuidados do renomado Dr. Rodolfo Bartocci e sua equipe e no dia 8 de fevereiro encarei o frio asséptico do centro cirúrgico do Hospital Unimed, os vultos paramentados de branco no seu bailado silencioso, a sensação ruim de estar contida numa tenda que me protegia e ao mesmo tempo me isolava do entorno, solidão difícil de explicar. Foi então que aconteceu algo do qual não me esquecerei.

Instantes antes de ser anestesiada, escutei no ouvido direito uma voz masculina sussurrante: “Alguém passou por aqui e me pediu para lhe dizer para rezar o Salmo 6.” Dos salmos, que são muitos, não conheço a décima parte. O que diria o de número 6? Antes que pudesse continuar pensando, apaguei.

Dias depois, recuperando pela memória emocional esse recado, procurei conhecer o conteúdo do tal salmo, ainda que alguns próximos tenham me dito ter sido aquilo uma alucinação. Seria? Acho que não. Alucinação foram as abelhas em enxames que eu via no teto, entrando e saindo do quarto mesmo com portas e janelas fechadas. Quanto ao salmo, mantenho nítida na memória a voz serena que me trazia a mensagem só depois interpretada por meu coração. Escrita por Davi ela é longa e bela na sua súplica por cura e proteção; mas o que mais me surpreendeu foi o trecho seguinte: “Tem misericórdia de mim, Senhor, porque sou fraca; cura-me, Senhor, porque os meus ossos estão perturbados.” Sim, meus ossos e minha alma estavam então muito perturbados.

As palavras do salmo têm povoado com frequência minha mente, neste período em que sigo rotina de paciente que já deixou o andador mas permanece na fisioterapia, onde especialistas fazem seu importante trabalho de reabilitação para devolver força e mobilidade ao joelho operado. Todos os dias vou de táxi à academia, levada pela motorista Edna Arantes, ex-aluna que reencontrei depois de décadas e com quem tenho mantido boas e alegres conversas enquanto o carro cobre o trajeto que me leva de casa ao outro lado da cidade. Diferentes assuntos animam nossas conversas. Um deles, recorrente, é a gratidão, principal razão desta crônica.

Quero agradecer ao Dr. Rodolfo Bartocci e sua equipe da Dome Clinic. Aos fisioterapeutas Rafa e Irineu. À Regina Moherdaui Jorge e Karla Granero, que me prepararam para a cirurgia. À Débora Mellem, analista a quem, há quase vinte anos, venho expondo dúvidas e angústias. Aos meus filhos, Junior e André, presentes nos momentos mais difíceis; aos netos; aos amigos que me animaram com palavras, gestos e flores, me aconselhando com bom humor a esperar que a ferida cicatrizasse e deixasse de parecer, como me disse o João, “maquiagem de festa de Halloween”. 

De maneira única agradeço à minha irmã Sandra que me acompanhou em todos os instantes com paciência e carinho, e me acolheu em sua casa por dez dias, até que eu tivesse condição de voltar à minha com a cuidadora Mônica Cavalcanti. Expresso gratidão também aos meus sobrinhos Tatiana (e Leo), Talita, Elis (e Johnny) que se desdobraram para me manter confiante. Sou grata aos anônimos doadores de sangue, pessoas verdadeiramente generosas. Por fim (mas de maneira nenhuma por último), agradeço aos leitores que acusaram minha ausência. Muito obrigada! Estou de volta, apoiada na bengala e apostando nos benefícios da hidroterapia.

Enquanto espero estar inteira novamente, releio clássicos da filosofia como Spinoza, cujo pensamento é eivado de ensinamentos sobre as coisas imanentes e transcendentes.  E leio novos lançamentos de ficção.  Depois de “O peso do pássaro morto” e “Pequena coreografia do adeus”, de Aline Bei, devorei o último lançamento de Regina Helena Bastianini, “Terra em Canto”, e o de Pedro Nunes Rocha, “Fio de Barba”, sobre os quais comentarei nas próximas semanas.

Escritores são meus mestres e inspiradores: ensinam-me o quanto existe na vida além das estreitas janelas que o narcisismo costuma manter cerradas. E escrever continua sendo um dos propósitos que me animam há tanto tempo: através da escrita busco me desenvolver como ser humano, especialmente nos momentos de sofrimento, seja físico, seja psíquico. A cirurgia a que fui submetida me mostrou isso mais uma vez, fazendo-me repensar como a alegria, embora necessária como as flores, os pássaros e a brisa, é fugaz e pouco fértil. É nos momentos de sofrimento que avançamos e adquirimos uma consciência mais aguda de nossa humanidade. O enfrentamento da dor é oportunidade de crescimento.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras