24 de dezembro de 2024
NOSSAS LETRAS

O lixo como sintoma

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 3 min
Fernando Frazão/Agência Brasil

Chega o verão e com ele o calor e as chuvas. Esta é uma constatação óbvia, embora o prefeito de conhecida cidade turística do país tenha declarado em programa de TV que nunca viu chover em janeiro. Há políticos que nunca deveriam ser eleitos, pelas imperdoáveis desinformação e ignorância que desvelam quando emitem algum ponto de vista.

Com as chuvas, nos tornamos espectadores de tragédias anunciadas. Todos estamos carecas de saber que, em centenas de cidades do país, depois das tempestades não vêm bonanças: o day after costuma ser de caos e perdas para milhares de moradores. As explicações são sempre as mesmas e fazem lembrar aquele prêmio Nobel que afirmou ser estupidez esperar mudança diante de um fato ruim quando se insiste em tratá-lo de maneira sempre igual.

Como almejar resultado diferente de anos anteriores se a práxis nos gabinetes e nas ruas tem sido sempre a mesma? À guisa de lembrete, desde o começo deste século, metade dos 5570 municípios brasileiros não conta com plano integrado para manejo do lixo, o grande vilão das enchentes que trazem prejuízos e mortes. Mas, a bem da verdade, a responsabilidade não deve ser colocada apenas nos ombros das administrações: parte da população também tem culpa no cartório, pois não cuida do lugar onde vive.

Lixo amontoado de forma indevida forma poças que se tornam abrigos de roedores ou criadouros de aedes aegypti, chikungunya e zika, vetores de doenças graves; carreado pelas enxurradas, entope bueiros e provoca inundações que levam tudo de roldão, como a mídia tem mostrado em imagens perturbadoras desde o começo deste 2024, numa reprise indesejável de anos anteriores.

Desse modo, por mais que servidores da limpeza retirem o lixo clandestino jogado sem vestígio de vergonha em terrenos baldios, esquinas até movimentadas, canteiros de avenidas e beiras de córrego, os infratores reaparecem, demonstrando sua falta de civilidade. Ser civilizado, dentre tantas outras prerrogativas, é reconhecer que não se vive sozinho; nosso comportamento incide também na vida dos que compartilham o mesmo espaço. A maneira como um povo (ou pessoa) trata seu lixo denota seu grau de civilidade.

A propósito, esta palavra deriva do étimo “civile”, com o qual os romanos identificavam todo aquele que morava na cidade, em oposição aos que se mantinham no campo. Numa comunidade urbana havia necessidade da criação de regras básicas para que todos convivessem mantendo o respeito mútuo. O conceito baseou-se desde sua gênese na harmonia das relações sociais, a partir de normas de conduta. Tornou-se antônimo de barbaridade, jeito de ser que ultrapassou os tempos. Legiões de bárbaros continuam povoando a contemporaneidade e desvelando com seus gestos, grandes ou pequenos, enorme falta de respeito em relação aos do seu entorno, ao seu grupo social, à comunidade onde decidiram viver.

Um caminho possível para amenizar o problema seria investir em campanhas contínuas que melhorem a percepção sanitária da população, enfatizem os benefícios de ações como a reciclagem, reuso e consumo consciente, desenvolvam a civilidade através da educação.

Nos países reconhecidos por órgãos especializados como mais desenvolvidos, a maneira de lidar com o lixo é um dos primeiros itens avaliados. Nessas culturas, de que são exemplares o Japão, a Alemanha, a Coreia do Sul e as nações nórdicas, as crianças aprendem bem cedo, em casa e na escola, a cuidar de seu próprio lixo; e a pensar modos de torná-lo cada vez mais reduzido, o que implica, claro, em não consumir freneticamente. 

Isso não demanda altas verbas ou custosas especulações da parte dos governos. Pede apenas a tal “vontade política”, de que tanto se fala em ano de eleição. Em termos individuais, se começarmos agora a nos comportar de forma diferente, talvez no final deste século os verões brasileiros tenham menos destruição. Como sugeriu Victor Hugo, para formar uma pessoa ética deve-se começar por seus avós.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras