Quando os portugueses chegaram havia tudo na imensidão: lindas águas infinitas, pássaros nunca vistos e povos desconhecidos. Fato tão grandioso, a descoberta da América completou a existência da “terra inteira”, que de repente “surgiu redonda do azul profundo”. O Infante, poema de Fernando Pessoa, ratifica a última glória de Portugal, cujo feito confirmou a esfericidade da Terra quando se atreveram a passar além da dor, desafiando o Cabo do Bojador.
A olhar do litoral para o sem fim da floresta quase impenetrável, subjugar a natureza e os indígenas foi o plano mais religioso do século XVI. A melhor ideia foi dividir a Terra em Capitanias, extensas faixas de terra dadas a senhores portugueses com capacidade financeira de levar adiante o plano de salvar almas gentias, podendo, nessa dura missão, serem os alienígenas agraciados com a descoberta de ouro e prata, metais determinantes no mundo mercantilista em que viviam os europeus da época.
Os capitães, futuros donos das capitanias, tinham direitos e deveres (povoar, administrar, punir, montar engenho, recolher para si impostos e também ao rei). Um senhor feudal renovado dentro do Estado Moderno, desde que seu lugar fosse longe da Metrópole. Mas como ter súditos? As capitanias podiam ser subdivididas em “pequenas” propriedades chamadas Sesmarias. Muitas cidades Brasil afora estão assentadas sobre Sesmarias de bandeirantes andejos, mistos de Anhangueras e heróis, sempre a nos lembrar como se deu a distribuição de terras nesta parte da América. A perenidade das Sesmarias atravessou séculos e permanece na forma atual de latifúndios.
Um europeu minimamente atento fica boquiaberto ao saber da existência de propriedades a perder de vista e que pertencem a um único dono ou família. Se na raiz a razão dessa distribuição de terras foi explorar, povoar e cristianizar, hoje resta a desigualdade e o privilégio para definir a incompletude desse resquício feudal que herdamos, que sobreviveu incólume aos agitos do final do século XVIII na Europa.
Revoluções, guerras e crises do capitalismo abalaram o início do século XX, no entanto, nada parece abalar a existência dos latifúndios que ainda grassam na triste América abaixo da linha do Equador. Basta um olhar atento, uma leitura, uma caneta teimosa para descrever os desníveis sociais, de posse e de injustiças que Capitanias, que eram hereditárias, depois as Sesmarias, geraram por todo o território que veio a ser Brasil. Em 1850 a Lei de Terras estabeleceu que a posse de terras se daria somente por compra, o que visava excluir o negro, visto que já se previa o fim da escravidão e a imigração seria a nova onda que desbravaria os sertões do vasto país. O início do século XX teve nova fase de expansão. A busca por terras férteis fez muitos homens com espírito atávico terem jagunços a seus mandos para deslocar ou eliminar posseiros, criar escrituras falsas de vastas propriedades- muitas terras devolutas- com o auxílio de grilos, sim, grilos, daí surgindo o termo grilagem de terra. Essa prática “envelhecia” papeis cuja finalidade era legalizar terras devolutas ocupadas ou não por posseiros. Para comprovar a posse antiga da terra através de documentos novos, os grileiros (quem pratica grilagem) colocavam os documentos falsificados dentro de uma gaveta cheia de grilos. Reza a lenda que os animais comiam partes dos papéis e com suas fezes acabavam deixando o papel amarelado e assim, passavam a impressão de que os documentos eram bastante velhos.
A Caixa de Grilos, do professor de Biologia Mauro Mehl, conta uma história de pura práxis, onde a força feminina, a determinação masculina, a consciência de ambos levaram o autor a criar expectativas no leitor desde a primeira página, tendo lances de coragem, amizades de longa data e cenas finais num realismo macabro e surpreendente, onde, “para cada caixa de grilos, sempre haverá uma caixa de ossos”, diz um personagem.
A persistência das sesmarias, hoje capitaneadas por latifundiários, é o espantalho que sobreviveu ao longo desses cinco séculos da nossa história, e serviu de inspiração para essa Caixa de Grilos.