24 de dezembro de 2024
NOSSAS LETRAS

Viver com mais leveza

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 4 min
Getty Images/istockphoto

“A humanidade evolui em pêndulos. Quando há muita restrição, queremos abrir. Mas quando está muito aberto, achamos exagerado. Por isso é importante resgatar a ideia do meio-termo”. Essas palavras são de Daniel Martins de Barros, psiquiatra, colunista do jornal O Estado de São Paulo, autor de “Viver é melhor sem ter de ser o melhor”, livro lançado em novembro.

O escritor e sua editora, a Sextante, escolheram boa época para o lançamento. Final de ano enseja em muitos o surgimento de expectativas que por serem desmedidas podem causar depois enormes frustrações. Ao lembrar ao leitor que o ano findo pode não ter sido tão ruim como talvez lhe tenha parecido e que o ano nascente não é garantia de felicidade ímpar, Barros alerta para o perigo que é nos distrairmos do lugar onde verdadeiramente estamos. Humanos não deveriam se acorrentar ao passado nem tentar desenhar futuro risonho a partir de ilusões. “Não se distraia de si! - parece nos dizer. Quem disse que é fácil?

Distrair-se é comum, explica o psiquiatra. É um jeito encontrado pelo cérebro para economizar energia, agir de modo automático. Entretanto, não ser-onde-se-está depaupera nossa experiência, reduz a chance de aproveitar o momento, diminui a criação de memórias. Vemos muita gente sem atenção plena ao que faz, e muitas vezes ficamos também neste estado de anestesiados. É preciso lutar contra a robotização, pois apenas quando estamos conectados deforma genuína ao que fazemos e sentimos, com quem falamos e ao que nos cerca, é que a vida ganha pleno sentido e cada minuto vale a pena. 

Leitor de ficção e poesia, o escritor promove interessante aproximação da história da humanidade com dois movimentos literários e artísticos dos séculos 17 e 18: o barroco e o arcadismo. O primeiro, com seus contrastes, dualidades e excessos, degenerou para tal ponto que dali só poderia advir o contrário. O segundo, sobretudo via linguagem poética, exaltou a simplicidade em oposição ao rebuscamento, a moderação em lugar da exaltação, a reflexão como antítese ao transbordamento.

Desde o século passado ocidentais estão conceitualmente mais próximos do barroco que do arcadismo, embora sejam sentidas nas últimas décadas, em algumas culturas ao redor do mundo, uma mentalidade que se revela no conceito “menos é mais”, e abarca da arquitetura às artes, do ambientalismo à decoração, da moda ao espetáculo. Mas o minimalismo é ainda apenas um aceno tênue, patrocinado por ambientalistas.

Por enquanto vivemos numa sociedade consumista, que gera constante tendência à insatisfação e ao exagero, e que nos expõe a altos níveis de ansiedade. A depressão faz milhões de vítimas, onde síndromes de nomes novos como Burnout revelam sofrimentos advindos de maneiras exaustivas de competir. Outro fator que adensa esse pacote avaliado por Barros é o da valorização da excelência. A pressão social pelo primeiro lugar começa muito cedo na alfabetização, avança pelos vestibulares, segue na vida adulta dos concursos, da disputa por vagas de emprego, da concorrência por promoções no trabalho etc.

Assim, é o alto desempenho que move a sociedade, e não, infelizmente, a compaixão ou a cooperação. Mas se em qualquer pódio os vitoriosos são poucos, “como ficam os outros?”- pergunta Barros. A resposta todos nós a temos:  frustrados, desiludidos, desanimados, derrotados, acreditando que não têm valor. Para esses, o livro oferece oportunidades de reverter sentimentos que rebaixam, ao desvelar algo que é óbvio e já era verbalizado pelos romanos quando afirmavam ser virtuoso o caminho do meio. “Aurea mediocritas”, definiu Horácio numa de suas odes, para traduzir a ideia de que a moderação é uma virtude. O vocábulo latino, que em decorrência de mudanças semânticas teve seu sentido transformado em “mediocridade”, no seu berço significava “o caminho do meio”.

O mesmo Horácio poetizou o ideal do “carpe diem,” nos dois últimos versos de um texto curto, escrito no ano 23 a.C: “Enquanto falamos, o tempo invejoso passa voando/ Aproveite o dia e deixe o mínimo possível para o amanhã”. Barros critica a interpretação distorcida em muitas antologias: o sentido implícito “não é o de desprezar o futuro, mas sim encará-lo como incerto.” Visto sob esse prisma, o lema é um estímulo para não postergar o que a vida nos oferece a cada dia.  Sendo a existência finita, deveríamos dar atenção a cada momento, desfrutando-o de modo tranquilo, sem pressa, inteiros no que estamos vivendo. “Se você está degustando uma comida, não fica compulsivamente se alimentado de tudo. Se você está curtindo um livro, não está comprando mais um monte de livros ao mesmo tempo. Então, esse critério de desacelerar e se conectar com aquilo que você está consumindo, pode ser um bom filtro para separar o que é útil do que não é.”

 O livro traz muitas outras sugestões a quem deseja viver melhor, entre elas deixar de lado ideias impostas, ignorar padrões que aprisionam, desfazer-se de tudo que é inútil. Mais do que isso, o autor estimula uma reflexão sobre nós mesmos, levando em conta o que nos é verdadeiro, com o que devemos nos conectar, o que desejamos construir e até quem somos, pra valer.  Através de seu reconhecido estilo bem-humorado e acessível, raro em cientistas, convida o leitor a trilhar caminhos mais leves, nessa contemporaneidade que vem cobrando preço alto ao corpo, à mente e ao psiquismo.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras