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20 de maio de 2024

NOSSAS LETRAS

Coisas bizarras só encontradas no Brasil

Artigo publicado no jornal Le Monde, edição virtual do dia 11 deste novembro, elenca hábitos que surpreendem europeus que nos visitam. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli
Especial para o GCN/Sampi Franca

18/11/2023 - Tempo de leitura: 6 min

Artigo publicado no jornal Le Monde, edição virtual do dia 11 deste novembro, elenca hábitos, modos de ser, criatividade e itens culinários que surpreendem europeus que nos visitam. Trago aqui uma tradução livre.

“O Brasil é um dos mais belos países do mundo, reconhecido por suas praias magníficas, a luxuriante Amazônia, carnavais selvagens e muito mais. Este país da América do Sul abriga uma população de mais de 214 milhões de habitantes que têm o português como idioma. A lista abaixo traz comportamentos, gastronomia e outras características nunca mostradas pelo The Travel Channel. Vamos a elas.

Escovar dentes em público
Soa inacreditável, mas cada brasileiro carrega dentro da bolsa uma nécessaire e, no seu interior, pasta e escova. Não se surpreenda então se você estiver no toilette de um restaurante e vir alguém sacar a dupla e começar a escovar os dentes na sua frente e na de quem estiver presente. A higiene é extremamente importante no Brasil, da escovação dos dentes à recusa em tocar alimentos com as mãos.

Cesto para papel higiênico
Muitos ficam chocados ao descobrir que os brasileiros jogam papel higiênico num cesto, em lugar de o destinar ao vaso. Em todos os lugares públicos e mesmo no ambiente doméstico há cestos para este fim. A explicação reside no fato de que vasos sanitários fabricados no país têm saídas estreitas que são obstruídas com facilidade. Em quase todos os banheiros públicos há um aviso bem destacado: “Favor jogar o papel higiênico no cesto”.

Povo criativo
Todos aplaudem a criatividade do povo brasileiro, encontrada em diversas situações. Desde o morador de uma área superpovoada que improvisa  grade do lado de fora de sua janela no quarto andar para assar carne, até as avós que fazem crochê e criam necessidades para seus produtos. São   tapetes para colocar na entrada da casa, no centro da mesa, ao lado da cama; ou suportes para moto na garagem, a fim de que o piso não fique marcado pelos pneus.

Câmeras de segurança
Segundo estatísticas de criminalidade, cerca de 25% dos brasileiros declararam-se vítimas de roubos ou furtos em 2021. Lojas e outros estabelecimentos não brincam quando se trata de evitar ladrões. O negócio do sistema de segurança vai de vento em popa e nas boutiques de carne até peças nobres, customizadas, têm alarmes na embalagem. O engraçado é que as próprias câmeras precisam ser asseguradas. Assim, são muitos os proprietários que as amarram na parede, com corrente resistente, para não serem roubadas.

Velaterapia
A velaterapia é um tratamento capilar criado pelos brasileiros. É técnica que deixa alguns estrangeiros um pouco nervosos só de olhar. Durante o processo, os cabelos são separados em mechas e cada uma é colocada sob a chama tênue de uma vela que toca os fios muito levemente. A chama queima as pontas esgarçadas dos fios. Essas são cortadas e recebem tratamento em profundidade. Quem se habilita?

(Im) pontualidade
O Brasil tornou-se célebre por sua visão irrealística de pontualidade. Entre todos os brasileiros, cariocas estão no topo da lista. Atrasos de quinze minutos, às vezes mais, são considerados insignificantes. E se a impontualidade é tida na maior parte do mundo como indelicadeza, no Brasil está no rol das coisas normais. Estendendo o comentário sobre o tempo para as festas, não há hora fixada para que terminem. Começam no início da noite e acabam quando os convidados, já cansados, sentem vontade de ir embora. Ou seja, no dia seguinte...

Abraços e beijinhos
No Ocidente, saúdam-se as pessoas com um aperto de mão, mas tal formalidade não é necessária no Brasil. Brasileiros são afetuosos. Ainda que estejam encontrando uma pessoa pela primeira vez, eles a envolverão num abraço e, em certos casos, lhe darão beijinhos. Outra coisa: chamam todo mundo pelo prenome, quer se trate de professores, patrões, religiosos, médicos ou vizinhos.

O vendedor de picolés
No litoral é fácil chegar aos 40º no verão. As pessoas sentem necessidade de se refrescar e podem fazê-lo não somente entrando na água mas também consumindo picolés de carrinhos empurrados por vendedores que caminham quilômetros na areia, sob sol escaldante. Os picolés são deliciosos e conferem ao paladar uma sensação de frescor açucarado. Existem dezenas de sabores.  Até sabor de “não-sei-quê”, quando o freguês fica em dúvida.  Nesse caso, o picolezeiro reponde ao “não-sei-quê” oferecendo napolitano, baunilha ou flocos, sabores preferidos pelos brasileiros.

A refeição mais importante
É expressão corrente entre nutricionistas que o café da manhã é a refeição mais importante do dia. No Brasil é o almoço. Empregadores e empregados fazem acordos para que haja pausa de duas horas para esta refeição que consiste em geral de arroz, feijão, salada, farinha de mandioca e uma proteína- carne de vaca, de porco, de frango ou ovo. No meio da tarde, se ainda houver fome pode-se comer uma “merenda”, que inclui café, pães, bolos etc...

Uma saideira, por favor!
A última bebida da noite se chama “saideira”. Quando amigos estão num bar, chegado o momento de voltar para casa pedem uma antes da finalização da conta. Há excelentes “saideiras” além da cerveja clássica. Por exemplo, a “caipirinha”, versão brasileira do “mojito”, é deliciosa. O drink brasileiro é preparado com limões verdes, açúcar, boa dose de cachaça e muito gelo moído. Tomar uma caipirinha na praia é privilégio para qualquer cristão.

Abacates com açúcar
Os abacates, comuns em muitos países onde são consumidos em saladas e molhos temperados com sal, pimenta e coentro, de que é exemplar a guacamole presente em cardápios de vários idiomas, no Brasil são preparados de um jeito bem diferente. Comidos em metade da cuia, depois de retirado o caroço, levam açúcar (muito) e limão. Como sobremesa sãos batidos no liquidificador com leite condensado e creme de leite e servido bem gelado em bowls. Também fazem com a fruta um frapê, onipresente nas casas de sucos.

Cafezinhos 
O café brasileiro é fonte de orgulho nacional, como alardeia a publicidade. Forte e doce é a maneira de beber o café nas casas brasileiras. Todos o tomam em xícaras apropriadas, pequenas. Os brasileiros utilizam para si os grãos de menor valor, pois os melhores são exportados. O cafezinho é especialmente popular, oferecido a quem chega, apreciado quando passado na hora, pretexto para conversas, saboreado ao logo do dia para ajudar a enfrentar a jornada de trabalho.”

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Acho que o articulista francês não falseou os fatos. De minha parte, desgostei do “bizarro” do título, que me pareceu pejorativo. Porém, entendo: também nós, brasileiros, quando em outra cultura, encontramos situações que avaliamos como “bizarras”.  É o diferente, o diverso, aquilo que o olhar não reconhece como parte do seu contexto. Sempre foi assim.

Outro francês, Michel de Montaigne (1533-1592), filósofo renascentista, criticou o olhar dos cortesãos do rei Carlos IX, que examinavam alguns tupinambás levados à França em 1562 como atração quase circense. Num texto tornado célebre, “Os Canibais”, Montaigne, que esteve presente no encontro, avalia como seriam bizarros os civilizados sob o olhar dos índios. E assim escreve um dos primeiros e mais ricos registros sobre uma tentativa de compreender o “Outro”, problema crucial que perdura nas sociedades contemporâneas.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras