Totó, o cachorrinho da Clara, foi embora. Não imagino quais ou como sejam os protocolos do céu, seja para humanos, seja para bichinhos de estimação que chegam lá. Na chegada, maltratado, com certeza, não foi. Ainda assim, não sei se foi recepcionado calorosamente por Carlos, avô da Clara. Clara, avó da Clara, de quem ela herdou o nome, provavelmente fez um afago, ele pode ter se deitado aos pés dela. Não sei se Lourdes, minha sogra, fez um carinho nele. Meu sogro deve tê-lo cumprimentado com pompa e circunstância. Meu pai, que nunca o tinha visto, ao vê-lo deve ter atirado alguma bola longe - se é que existem bolas no céu - e incentivado Totó a ir atrás. E meu irmão, André, provavelmente coçou a barriga do Totó, irritando-o.
Totó foi realização de sonho da Clara. Quando ela viu O Mágico de Oz, ainda pequena, bem pequena, apaixonou-se pelo cachorrinho da tela que era assim chamado por Dorothy, a Judy Garland. Era curioso ver a paixão que ela desenvolveu pelo filme, pelos atores, pela música Over The Rainbow, composta quase um século antes de ela nascer. Aí ela quis um Totó pra chamar de seu. E ganhou. Única diferença, no filme ele tinha pelo preto. E o da Clara era branquinho.
Clara vivia agarrada nele. Levava-o para toda parte, ainda que ele não tivesse muita educação. Fazia xixi por todo lado, cocô também, bebê que era. Mas aí, Marina, a irmãzinha, chegou em 2008 na vida da Clara. Nasceu prematura, frágil, deveria ficar longe de poeira, de mofo e de pelos de animais. Ao voltarem da maternidade, os pais tiveram que convencer Clara a ficar distante de Totó. Nenhuma outra alternativa, senão separar o cachorrinho da rotina da família. E ele iria para onde? Logo descobriram. Casa de avó tem muita serventia...
Confesso, nunca tive paixão por animais. Mas a vida tem me mostrado entre lição e outra, realidade bem diversa e contraditória. Volta e meia percebo que não mais das vezes eles se mostram muito mais agradecidos que humanos ao que se faz por eles. Mais gratos. Não mordem a mão de quem os afaga e protege, agradecem a quem mesmo eventualmente os alimenta, acolhe e lhes dão carinho. Assim, com a promessa de que tão logo o nenê melhorasse as coisas voltariam a ser como era: cada um na sua casa. Qual o quê!
Totó foi ficando na casa da avó, paparicado pelo jovem tio, pelas crianças que frequentavam o local, mas se mostrou absolutamente avesso a qualquer adestramento. Afinal, pensavam, ele voltaria tão logo o pediatra do bebê liberasse, razão pela qual não se procurou treinador para adestrá-lo. Não entrava em casa, vivia solto: durante o tempo em que viveu, ficou sob os cuidados do serviço de pets que o buscava e o levava para higienizar. Era muito bem alimentado, veterinário sempre que preciso, mas nunca foi ensinado a não rolar na grama, a não perseguir pássaros, lagartos que apareciam no jardim, rolinhas desavisadas, pombos distraídos. E ali ficou. Era poodle, tinha origem, mas era absolutamente livre. Dava inveja.
Pois neste último 19 de junho de 2023, devido a problemas de idade, Totó partiu. Ultimamente estava morando no escritório do tio da Clara, onde foi amparado pela turma de jovens trabalhadores. Não me atrevi a calcular sua idade, mas ele esteve entre nós, por 16 anos e meio. Acho que viveu bem, afinal. Viveu, como se diz, com liberdade total. Deve ter sido feliz.
Lúcia Helena Maniglia Brigagão é publicitária e escritora.