Pensar no que é o Brasil não é tarefa simples. Exige pensar o diferente, o oposto, o clima, a vegetação, as pessoas. Quando a academia produz dissertações e teses, autores recortam seus temas e sobre eles se debruçam com dedicação. O entusiasmo deve guiar as palavras, cujos trabalhos finais serão lidos e questionados.
A dissertação de Mestrado de Claudete Petriw, Memórias de Antes Tempo, abordou Gênero e Mulheres numa localidade na zona rural de Prudentópolis-PR, cujo nome é Faxinal Barra Bonita. Barra, lugar onde a comunidade planta seus alimentos. Barra, lugar onde o sol desponta no horizonte de forma inesquecível. Não é por menos que é Bonita. O Faxinal, lugar com árvores em campo aberto onde animais – porcos, cabras, vacas, cavalos e galináceos – vivem soltos e juntos. Sim, todos os animais da vizinhança se misturam nesse lugar, o Faxinal, e ao entardecer, galinhas e porcos “sabem” voltar para seu dono.
Claudete Petriw analisou três gerações de mulheres e homens nesta localidade, quando foram instigados a evocar o passado e suas memórias. Seguramente, a autora cumpriu seu intento em localizar a divisão de trabalho entre homens e mulheres, apontando a minoridade que ainda persiste em deixar a mulher no espaço da casa, que se estende ao terreiro, espaço externo, ao qual cabe a ela fazer a manutenção: Tratar dos pequenos animais, não deixar que a primavera chegue e não haja plantas e suas flores filtrando o sol da tarde sob o vapor da água fervente para o chimarrão.
A lida no campo é coisa de homem, as mulheres ajudam, e não é trabalho em si. Pessoalmente, conheço aqui mulheres que passam o dia na lida com o marido. Um filho ou filha responde pelos afazeres da casa... Ao ler este livro, vejo que ele ultrapassou o intento da autora, percebemos nele como “o tempo muda”, como a cultura é móvel, como tudo tem mudado de forma acelerada.
A primeira geração estudada pela autora dá-nos uma visão do tempo que não mais existe. O Antes Tempo, que não se traduz por "antigamente", permeia as falas, na emoção de quem foi instigado a lembranças, sejam elas boas ou nem tanto. O Antes Tempo irá se apagar, a acomodação das novas gerações descendentes dos primeiros imigrantes ucranianos para essa região, dada a mobilidade cultural que vai moldando os mais jovens.
Claudete Petriw manteve a fala dos entrevistados exatamente como falam. Na leitura, soa aos nossos ouvidos o sotaque, as palavras pronunciadas de forma diferente... o alfabeto ucraniano tem particularidades que dificultaram a pronúncia de muitas palavras em português, especialmente aos entrevistados da primeira geração. Leio os relatos e ouço mentalmente os sotaques já raros entre os jovens. Assim, irão morrer o Antes Tempo e os sotaques. Também irão morrer os Faxinais, ou, encolhendo de tempo em tempo, rareando as Araucárias, as subflorestas e o espaço rasteiro dos animais livres.
O espaço verde e coletivo cedendo lugar a plantações comerciais, soja, trigo, fumo. Aqueles primeiros momentos, a aurora das dificuldades, exigindo de todos a força do machado e da foice, da cerpi e a coragem. Tudo isso passou, e deve ser o lado bom das mudanças. E quando uma descrição ficará para sempre em nossa memória de leitor, Seu Lademiro Muzeka descreveu-a pelos caminhos da escola escorregando os pés na grossa camada de geada daqueles tempos. Os galhos dos pinheiros (Araucárias) pareciam que iam ao chão tão grossa a geada que se formava neles.
Onde hoje? O Antes Tempo. Essa mudança climática violenta em tão pouco tempo faz hoje o inverno aqui ser de poucas geadas, a neblina ainda paira em manhãs contadas de junho e julho. A descrição de Seu Lademiro repousa apenas na memória. Desta leitura, creio que este se tornará um livro-fonte no futuro, visto que captou memórias sobre comportamento, adaptação, observações sobre a natureza e o clima, o jeito de falar, especialmente da primeira geração, mais próxima da originalidade dos primeiros tempos da imigração. De tudo isso irá restar muito pouco, ou mesmo findar-se: os Faxinais, os sotaques, o clima que já não é o mesmo. Ficarão as Barras, faixas de terras produtivas, onde o sol nasce plenamente belo para toda vista possível.