17 de novembro de 2024
OPINIÃO

Gratidão

Por Lúcia Brigagão | Especial para o GCN
| Tempo de leitura: 3 min

Sozinha. Não raro o paradeiro, atual trilha sonora da minha vida, me incomoda. A falta de balangandãs e penduricalhos – físicos ou mentais – se agitando ao sabor e bem querer do vento da alegria alheia me entristece. Aí me lembro das horas que minha cabeça doía por causa dos choros, das birras, das vontades não satisfeitas e vinha aquele desejo de ouvir silêncio total. Ou ser surda.

Tem hora que não ouvir vozes, sonidos, rumores e ruídos me faz lembrar do tamanho, dimensão e medida do espaço vazio que percebo ao meu redor. Aí me lembro de quantas vezes sonhei em apagar as luzes, virar na cama e simplesmente fechar os olhos, sem ter que verificar se estava todo mundo em casa, conferir carros na garagem, passar de cama em cama para me certificar que estavam todos cobertos ou se, durante a madrugada, não teria que descer as escadas e ir buscar água lá na cozinha.

Tem hora que não precisar abastecer a geladeira, os armários, escolher qual comida pronta deixar preparada para alguma eventualidade ou emergência ou sair só para comprar pão, presunto e queijo é uma bênção. Aí compro apenas vinho – Primitivo, de preferência - chego em casa, ativo  o Spotfy, decido se escolho entre Buena Vista, Pavarotti, Milionário e José Rico e penso o tamanho do privilégio de ser independente, decidir sem quaisquer interferência, ser livre para ir e vir. Ou apenas escutar e executar o que desejo. Meço meus passos, tiro o vinho da geladeira, o queijo, abro a garrafa, pego a melhor taça do armário, apago as luzes, acendo vela cheirosa e usufruo do prazer de perceber que solidão é bênção, não castigo. Eu sou minha melhor companhia, estou quase me convencendo.

Surpreendo-me, não raro. Favoravelmente, muitas vezes.  Recentemente ao atravessar a pé pela primeira vez a avenida Paulista em São Paulo depois do acidente que quase tirara minha vida meses antes, fiquei paralisada vendo os carros obedecerem o sinal vermelho do semáforo, que interrompia  o fluxo dos carros, à minha frente. Duas etapas para chegar ao outro lado, a avenida é muito larga. A travessia me parecia difícil, como aquela bíblica, do Mar Vermelho. Uma horda de hebreus também aguardavam de lá e de cá, atentos todos ao barulho dos carros ligados, ao ronco dos motores e de gente impaciente pisando no acelerador.  Fiquei por instantes em estado catatônico pensando vou ou não vou. Arrisco-me ou espero. Foi quando o braço dobrado apareceu à minha frente. Estava coberto por mangas compridas da camisa preta e seu dono - não sei se novo ou velho, me oferecia a possibilidade de segureza para vencer o mar de carros e gente apressada para as quais eu não existia. Não falou comigo. Apenas me ofereceu certeza e apoio, que aceitei tacitamente. Dividida entre o inusitado do gesto e a dubiedade, o perigo e o risco do trânsito não olhei para ele; ao ter que acompanhar o passo apressado, deixei de conhecer o rosto do meu Moisés. Atravessamos rapidamente, não deu tempo de agradecer efusivamente, ele me deixou em segurança sobre a calçada do outro lado, levantou o braço e, sem que eu pudesse fazer nada, sumiu na multidão.

Não me deixou as tábuas dos dez mandamentos mas provou que se deve amar ao próximo, como a si mesmo e me fez compreender que entre a solidão e a solitude há imensa diferença, que nunca antes tivera oportunidade de perceber.