17 de novembro de 2024
OPINIÃO

Encontro

Por Lúcia Brigagão | Especial para o GCN
| Tempo de leitura: 3 min

Saía do escritório, com pressa. Muito trabalho pendente. Levaria documento importante num endereço próximo, voltaria e retomaria à atividade interrompida pela urgência alheia e inesperada. Entrou no carro, deu partida, fez na esquina a conversão. A idosa, surgida de detrás do muro, pulou na sua frente, quase foi atropelada. Veio balançando as mãos, aflita. Veio em direção à motorista, quase chorando.

Susto! Imediatamente ouviu o choramingo: “Moça, moça me ajude!” Pensamento é rápido. Passou senão o filme, pelo menos o trailer na cabeça daquela que fora chamada tão impropriamente de moça e que parou exatamente pelo estímulo de ter sido confundida com alguma jovem: alguém deve estar passando mal, essa senhora precisa de ajuda, o que vou fazer com meu trabalho, estou perdendo tempo, ai, meu Deus! mas vou ajudar etc.

Não era nada daquilo. A velhinha ganhara volumoso saco de roupas, não estava aguentando com o peso, não podia dispor de tão preciosa carga e tinha que ir embora: "me leva em casa?" ela pediu, ansiosa. "Levo, sim, onde a senhora mora?"

"Longe", ela respondeu, "mas me deixa perto daquela fábrica perto da ponte". A “moça” desceu do carro, pegou o saco (pesadíssimo), botou a velhinha no carro e se mandou para o vago endereço. Durante o trajeto foi pensando que tudo bem, ia dar uma volta, mas sobraria algum tempo para cumprir as obrigações. Meio apertado, mas tudo bem. Foram em silêncio. Quando chegaram na tal fábrica, ela perguntou qual a direção deveria tomar. A velhinha desnorteada olhou para a direita, para esquerda. Parecia confusa e pediu segurando o braço da motorista com as duas mãos: Me leva em casa?

Ai meu Deus, eu mereço! Essa mulher não sabe em que ponto do planeta está. Eu não sei quem ela é, se ela tiver um piripaque aqui dentro eu estou ralada, não sei se alguém vai acreditar nessa história. Como é que vou explicar? Você é muito burra, pensou! Dá um jeito de deixar a velhinha num ponto de táxi, pague o motorista e ele que se vire etc., pensou. Mas disse: “Minha senhora, eu não posso lhe levar, estava trabalhando, tem gente me esperando, infelizmente não tenho tempo, em que ponto posso deixá-la?” Ouviu fraco: “Ali no posto de gasolina. Lá então pego um ônibus".

A “moça” novamente titubeou e meio impaciente retrucou:
-Escuta, fala direitinho onde a senhora mora!
- Eu moro perto da rodoviária.
- Mas a rodoviária é do outro lado da cidade!
- Não! Você não entendeu!  Eu moro perto da rodoviária de Valparaíso, doze quilômetros daqui!

A “moça”, já irritada, parou no tal posto, desceu o saco de roupa, desceu a velhinha, ainda perguntou se ela tinha dinheiro.
- Tenho! Tenho um real!
- Muito bem. Toma mais dez, a senhora paga o ônibus e... boa viagem!

Entrou no carro e se mandou, quase em paz.  Não conseguiu ir além da esquina. Olhou para trás, viu a velhinha atormentada e inquieta, perdida, desesperada. Deu ré:
- Vou levar a senhora!

Botou o saco no porta-malas, colocou o cinto de segurança, tomou rumo da estrada. A velhinha quase chorou. Agradecia muito, Nossa Senhora é que promoveu o encontro, que a “moça” havia de receber em dobro, que ainda havia gente de coração bão no mundo. No destino, desceram para apresentação à família. E responder: não, não queria apear, nem almoçar, muito obrigada! Veio em paz, certa de que basta pequeno esforço e ainda lhe sobra tempo para solidariedade.

Lúcia Helena Maniglia Brigagão é publicitária e escritora.