Não consigo reconhecer minha velha Franca, cidade que me abriga há bastante tempo, cidade onde nasci e onde construí minha história, nesta confusão e mistura de gente, mau humor, lojas, pedintes e confusão de carros que tenho encontrado por aí. Ruas cheias de veículos, caminhões e motos que desrespeitam leis, pessoas e limites, que se tornaram difíceis de atravessar porque a soberania motorizada impera e substituiu a paciência, a tolerância e o respeito de uns pelos outros. Entre outras arbitrariedades.
Houve um tempo, aquele da delicadeza, em que os motoristas paravam seus carros para dar passagem ao pedestre, mesmo que desavisado, lembra? Não buzinavam, apenas pisavam no freio para aguardar a chegada no outro lado da rua do seu semelhante, quer fosse a moça bonita, a senhora idosa, o homem feito ou a mãe com filhos pequenos. Ou a própria criança. E nem gritavam uns com os outros porque o percurso era mais importante, que alcançar o objetivo de chegar a algum lugar.
Houve um tempo, aquele do respeito, em que os condutores de veículos não ultrapassavam o limite permitido para tráfego, porque poderiam atingir outro ser humano quer estivesse no meio da rua, ou da calçada. E era proibido ir além da velocidade determinada pelo serviço de trânsito.
Houve um tempo, aquele da empatia, em que o motorista ajudava o próximo. Não dava dinheiro cujo destino é previsível na maioria das vezes, mas alimentava o pedinte com comida, com frutas deixadas no carro, até interrompia seu trajeto para comprar e doar algum alimento. Mas isso foi antes que o medo de ser assaltado, atacado, se instalasse no mesmo local em que batia um coração.
Há tempo, quando o governo local decidiu humanizar a cidade, principalmente locais de grande afluência de público, pediu ajuda aos cidadãos, que acataram a ideia. Orçamento curto para colocar bancos nas praças e logradouros, por exemplo, centenas de francanos compraram, personalizaram estruturas de granilite que foram colocadas em vários pontos da cidade. Acredito que copiaram a ideia no Reino Unido, onde os bancos de madeira espalhados pelas praças trazem, gravadas, inscrições variadas informando o nome ou iniciais do doador e, às vezes, as circunstâncias da homenagem: “Doado por Mrs e Mr Fulano de Tal, por ocasião de suas bodas”. “Família Tal”. “RIP, Robert, my love”.
Na nossa cidade também aconteceu esse mesmo movimento. As várias (e bonitas) praças receberam doações e os bancos, não de madeira, mas de cimento, foram colocados. Meu pai, Nicola Maníglia Júnior e Nelson Nogueira, funcionários do Banco do Brasil tiveram o seu. Eram grandes amigos, decidiram se cotizar para dar pequena parcela de colaboração e oferecer à cidade um daqueles bancos. Meu pai se divertia: segundo ele, agora era “dono de um banco”, junto com o Coronel, apelido que ele colocara no amigo Nelson Nogueira. Havia doações feitas pelos Minervino, por Jonas Deocleciano Ribeiro, médicos, dentistas, lojas e comerciantes.
Mas aí veio equipe do governo municipal do Gilson de Souza e pintou os bancos de granilite, apagou os nomes dos doadores, ninguém sabe com qual intenção, que ficou confinada às quatro paredes do conluio. Quase tive um enfarte. Primeiro, pelo desrespeito àqueles homens e instituições que contribuíram com o governo da época e, segundo, porque, de certa forma, apagavam mais uma vez a memória da cidade.
Ainda não aprendemos a cultuar o passado no sentido de assumi-lo e reconhecê-lo parte viva de nós, quer gostemos dele ou não. Que não é simplesmente porque o apagamos dos olhos, que ele desaparecerá. Gostaria, sinceramente, de ver os nomes retornarem aos bancos.
(A foto foi feita antes da famigerada reforma, que chamaram de revitalização, feita pela equipe do prefeito Gilson. O banco da praça funcionava como cenário para foto dos descendentes da família dos doadores.)
Lúcia Helena Maniglia Brigagão é publicitária e escritora.