24 de dezembro de 2024
GAZETILHA

O recado da CIA e os ouvidos moucos de Jair

Por Corrêa Neves Jr. | editor do GCN
| Tempo de leitura: 6 min

“Quem despreza o conselho útil fica com o inútil”
Gualterius Anglicus
, poeta anglo-normando


Repercutiu muito, mas ainda assim menos do que deveria, a informação revelada com exclusividade pela agência internacional de notícias Reuters, uma das mais respeitadas do mundo, sobre alguns encontros para lá de discretos entre o diretor da CIA (Agência Central de Inteligência), William Burns, o presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus mais próximos assessores. Segundo a Reuters, as reuniões aconteceram em Brasília, em julho do ano passado, e tiveram como único e principal assunto os constantes ataques que o presidente Bolsonaro faz ao sistema eleitoral brasileiro.

De acordo com a Reuters, foram pelo menos dois encontros. O primeiro, com a presença do próprio presidente Jair Bolsonaro, o chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional), general Augusto Heleno; e o então diretor da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Alexandre Ramagen, no Palácio do Planalto. O segundo, um jantar com o mesmo general Augusto Heleno e o então secretário-geral da presidência, o também general Luiz Ramos, na casa do embaixador americano em Brasília.

Não foram encontros para esboçar simpatia pela causa. A razão do deslocamento do comandante da CIA desde a Virginia, nos Estados Unidos, onde fica a sede da agência de espionagem (ou de inteligência, como preferem ser chamados), até a capital do Brasil, foi um só: deixar claro à liderança brasileira que não se deve questionar sem provas o sistema eleitoral e que qualquer tentativa de boicotar nossa jovem e frágil democracia seria rechaçada prontamente pelo governo americano.

Tanto Bolsonaro quanto Heleno negaram que tenham recebido quaisquer “recados” do governo americano, mas não desmentiram os encontros. Também não detalharam o que teria sido discutido, já que segundo sua versão não foram as eleições. A CIA não confirmou nem desmentiu. Disse apenas que os assuntos de inteligência são protegidos por sigilo, o que, na prática, significa admitir tudo aconteceu exatamente conforme relatado pela Reuters. Fosse diferente, a CIA teria negado, pura e simplesmente. Além disso, o texto da Reuters menciona três fontes diferentes (duas no Brasil, uma nos Estados Unidos) que teriam fornecido todos os detalhes. Se você domina o inglês, vale a pena clicar neste link e acessar a íntegra da reportagem publicada na última quinta-feira, 5.

Muito se disse sobre o assunto nos últimos três dias – da simples negativa do teor da reunião, como fez o governo brasileiro, até gente que à direita ou, até mesmo, à esquerda, reclamou da ingerência do governo americano em assuntos “internos” do Brasil.

Mas o principal ponto, pelo menos para mim, passou despercebido – ou não foi destacado – nos principais artigos que li: por que, afinal de contas, Joe Biden pediu a William Burns, o poderoso diretor da CIA, que servisse de garoto de recados para trazer sua mensagem ao presidente brasileiro? Por que Biden escolheu especificamente Burns?

A dúvida é simples e a resposta, pelo menos sob minha ótica, pode ser perturbadora. Há que se considerar que, se Biden estivesse apenas incomodado com o que anda dizendo Bolsonaro, ou irritado com aquilo que seu colega brasileiro representa, haveria inúmeras outras formas de alcançar o mesmo objetivo – com muito maior discrição e menor especulação.

O presidente americano poderia ter determinado ao seu Chief of Staff, Ron Klein, que convidasse o embaixador brasileiro em Washington, Nestor Forster, e dito a ele o que bem entendesse. Ou então, poderia ter incumbido da missão algum de seus representantes diplomáticos no Brasil, que poderiam ter procurado o Ministro das Relações Exteriores, Carlos França, para transmitir as inquietações do líder da maior superpotência do mundo. Restaria ainda a alternativa de designar a tarefa para o secretário de Estado americano, Antony Bliken, que poderia ter vindo em visita oficial ao Brasil.

Ao invés disso, o que Biden fez foi pedir ao homem que comanda a maior rede de inteligência do planeta, com escritórios e operações em todas as nações do globo e acesso a recursos quase ilimitados de espionagem, para que interrompesse o que quer que seja que estivesse fazendo para vir pessoalmente ao Brasil.

É preciso ter em mente que o chefe da inteligência americana tem que lidar com questões delicadíssimas como os intermináveis conflitos no Oriente Médio, o perigoso equilíbrio com a China, a sempre problemática Rússia, o talibã, ameaças terroristas permanentes aos Estados Unidos ou quaisquer outras crises, onde quer que elas ocorram e representem, direta ou indiretamente, perigo para os Estados Unidos. Durante alguns dias de julho do ano passado, Burns se afastou disso tudo para tratar de Brasil, no Brasil.

Outro ponto importante e recordar é que, em 2013, descobriu-se que NSA (National Security Agency) havia espionado nada menos do que a então presidente brasileira, Dilma Rousseff (PT), e mais de 20 outras autoridades. Fazia parte da lista dos grampeados pela agência-irmã da CIA Dilma (seu celular, o telefone do gabinete, seus e-mails e até o telefone do avião presidencial); e ministros como Antônio Palocci (Fazenda), Nelson Barbosa (secretário executivo da Fazenda), o general José Elito Siqueira (GSI) e Luiz Roberto Figueiredo (subsecretário de Meio Ambiente). Faziam parte dos espionados também os secretários pessoais da presidente, Anderson Dornelles e Nilce. Na prática, tudo que de relevante o governo brasileiro discutia, em reuniões formais ou informais, era capturado e analisado pelos espiões americanos.

Apesar do constrangimento à época, que ninguém duvide que o esquema continua, em maior ou menor grau, de pé. É da própria essência da atividade de espionagem fazer exatamente isso – espionar. Recolher dados, “ouvir” segredos, consolidar relatos, para permitir que sejam feitas análises de inteligência.

Para mim, este é o grande ponto que explica a presença de William Burns por aqui. É quase certo que aquilo que hoje apenas supomos possa ter sido comprovado pelo serviço de inteligência americano. Bolsonaro não apenas pretende dar um golpe de Estado se perder as eleições, como também já colocou em marcha suas ações, discutindo passos e detalhes com seus assessores mais próximos. Sobram evidências desta hipótese: o presidente permanentemente desacredita das urnas, como se algum problema tivesse sido detectado, o que nunca ocorreu; ataca as pesquisas eleitorais, como se fosse impossível Lula liderar a disputa neste instante; ataca o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, instâncias que têm a palavra final em qualquer assunto relacionado ao tema; e constantemente critica a imprensa, como se nada que se publica, posta ou veicula fosse verdade.

Tudo isso cria em parcela da população a ideia de que Bolsonaro é vítima de uma armação, de que ele é amado por todo mundo menos a "esquerda comunista" e que, se perder, é porque foi roubado, o que criaria o pretexto para a interferência das Forças Armadas para impedir a posse do vitorioso nas urnas. Recordem-se as palavras recentes do Ministro da Defesa, general Paulo Sérgio, que depois de se encontrar com o presidente do STF, Luiz Fux, fez questão de dizer que as Forças Armadas estão em estado de permanente “prontidão” para “cumprir suas missões constitucionais”. Insinuação mais clara do que está por vir, impossível.

Duas coisas são certas. A primeira, William Burns não veio ao Brasil a passeio. O que quer que seja que tenha dito, era sério o bastante para justificar sua vinda e permanência por alguns dias por aqui. A segunda é que, independente do que tenha ouvido, o presidente brasileiro fingiu de árvore. Não recuou nos ataques ao sistema eleitoral, na sua estratégia em desacreditar tudo que não lhe seja conveniente nem na tentativa de cooptar as forças armadas. O golpe está em curso, como já escrevi a algumas semanas. Se vamos resistir ou não, só o tempo dirá. Mas o prognóstico, a seis meses do pleito, é o pior possível. 

Corrêa Neves Jr é jornalista e editor-chefe do GCN.