“Chega sempre um momento na história em que quem se
atreve a dizer que dois e dois são quatro é condenado à morte”
Albert Camus, escritor francês
Há um certo tipo de gente cuja visão de mundo, dimensão intelectual e relevância pessoal são tão insignificantes que sequer mereceriam maiores considerações – muito menos, resposta para suas palavras ou atos, usualmente tresloucados. São míopes morais, do tipo incapaz de enxergar a história que se passa um palmo à frente do nariz. Mas, vez ou outra, o destino faz com que circunstâncias muito específicas catapultem este tipo de pessoa para lugares que ela jamais alcançaria por méritos próprios, por suas convicções e, muito menos, pelo brilho de suas ideias.
Temos em Franca alguns casos emblemáticos. Nos dias de hoje, nenhum exemplo é mais perfeito do que o personalizado pelo professor Everton de Paula, homem sem qualquer densidade política que se viu alçado ao cargo de vice-prefeito pelos caprichos da história. Foi eleito na chapa encabeçada por Alexandre Ferreira (MDB), a quem Everton deveria agradecer eternamente o posto de vice.
Everton teve sorte – apesar de ser o homem errado, estava na hora certa, no lugar certo. Poderia aproveitar o privilégio e contribuir para alguma coisa. Particularmente, em função de seu histórico como professor, para melhor educar a população. Mas desde que tomou posse, ele tem se esforçado para fazer exatamente o contrário: sua especialidade é lançar trevas onde deveria haver luz, misturar religião com política, adorar todas as atitudes do presidente Jair Bolsonaro, mesmo as mais questionáveis, além de atacar, sistematicamente, a imprensa.
Comportamento inaceitável para quem se define como educador, o professor agora quer reescrever a história, ignorando os fatos e criando uma versão “alternativa” para eventos que estão mais do que documentados. Se não for por ignorância, é por má-fé. Não sei qual o pior, considerada a posição que ocupa.
O mais recente episódio que tem o professor Everton de Paula como protagonista envolve o 31 de março, data que marca o golpe militar de 1964. “31 de março de 1964 – Há 58 anos, com os militares e as famílias brasileiras e as pessoas de bem, o Brasil disse não ao COMUNISMO, SOCIALISMO e GRAMSCISMO. E continua a dizer NÃO até hoje, menos o PT, a Globo, partidos de esquerda e aqueles alunos que foram doutrinados por professores de esquerda no ensino superior. E dirá novamente NÃO! Nas próximas eleições presidenciais. O Brasil não tem vocação para ser um país de esquerda”, bradou o professor, nas suas redes sociais, na última quinta-feira, 31. O trecho acima reproduz integralmente, ipsis literis, o que escreveu Everton de Paula.
Fatos são fatos – ou, pelo menos, deveriam ser. E o que aconteceu em 1964 não poderia ser mais distante do que o “relato” enviesado do vice-prefeito de Franca. Sempre que um governante eleito é apeado do poder sem processo de impeachment, apenas pela força das armas, têm-se um golpe. Foi exatamente isso que aconteceu no Brasil naquele março de 1964.
João Goulart era vice. Havia se tornado presidente após a renúncia do titular, Jânio Quadros, em agosto de 1961, apenas sete meses depois de empossado. Desde este instante, Jango, como Goulart era conhecido, enfrentou toda sorte de resistência. Quando Jânio surtou, o vice estava em viagem oficial ao Exterior, e só tomou posse após uma manobra em que foi obrigado a aceitar a mudança no regime de governo – saía o presidencialismo, entrava o parlamentarismo. Não vou me aprofundar aqui, mas o fato é que, em 1964, João Goulart havia conseguido restaurar suas funções e presidia o país. De fato, e de direito.
Era um homem de esquerda, o que também é um fato, mas muito longe de ser comunista. Era um estancieiro, um fazendeiro, com grandes propriedades no Rio Grande do Sul. Diria que, vivesse hoje, estaria muito mais próximo de Ciro Gomes do que de Guilherme Boulos. Defendia reformas, que ele chamava de “base”, como a agrária, e propunha projetos de lei para isso. Era visto como demônio pela direita brasileira, ainda recheada de latifundiários. Mas João Goulart não impôs nada, não fechou o Congresso, não aposentou ministros do STF. O que ele queria fazer, concorde-se ou não com suas ideias, foi proposto através das regras democráticas. Este é mais um fato.
Some-se a este contexto um outro elemento concreto. Haveria eleições presidenciais em 1965 e o favorito era o ex-presidente Juscelino Kubitschek, o JK. Alguns governadores, cujas tentativas de se eleger presidente tinham sido fracassadas nos pleitos anteriores, viam na disputa de 65, até pela idade, sua última chance, e o favoritismo de JK incomodava profundamente. Juntou-se então a fome com a vontade de comer. Uma conspiração que reuniu governadores, congressistas e militares começou a ganhar força para dar um golpe de Estado, remover Jango à força da presidência e, sonho dos inocentes, promover eleições gerais no país. Sem Jango e, de preferência, sem JK.
Estes mesmos governadores, que conspiravam pela saída do presidente, incentivaram “movimentos populares” que fizeram passeatas e marchas contra Jango. Em muitos casos, envolvendo o nome de Deus, mais ou menos como algumas das motociatas que “bolsominions” fazem hoje para apoiar seu “mito”. Enfraquecido e confiante nos líderes militares errados, Jango foi presa fácil para o golpe, que começou no dia 31 de março com as tropas comandadas pelo general Mourão Filho, a partir de Minas Gerais, rumo ao Rio de Janeiro, que já não era a capital da República mas ainda se mantinha como centro do poder. Nem 10 mil linhas seriam suficientes para descrever em detalhes tudo que aconteceu naquelas horas, mas, basicamente, sucessivos generais responsáveis pelas regiões militares foram aderindo ao movimento golpista. O presidente do Senado, Aldo de Moura Andrade, numa manobra canhestra, aproveitou que Jango estava fora de Brasília para declarar “vaga” a presidência. Governadores comemoraram. João Goulart não enfrentou processo de impeachment, não foi acusado de nada nem teve como se defender. Foi removido do poder e acabaria exilado no Uruguai, país que faz fronteira com seu Rio Grande do Sul, até a morte.
Não haveria eleições em 65. Nem em nenhum outro ano, para presidente, até 1989. Até 1982, não se votava também nem mesmo para governador, para prefeitos das capitais nem para senador da República. Os militares rapidamente tomaram gosto pelo poder. Retalharam a Constituição, suprimiram as garantias individuais, inclusive o habeas corpus, e forçaram a aposentadoria de ministros do Supremo Tribunal Federal. Cassaram mandatos de governadores, ironicamente, especialmente daqueles que apoiaram o golpe. Censuraram a imprensa, as músicas, as novelas e filmes, os livros, as peças de teatro. Perseguiram e mataram quem pensava diferente, muitas vezes em sessões de tortura onde não havia dignidade. Prisões eram feitas sem direito a advogado de defesa ou a coisa nenhuma. Proibiram reuniões de pessoas, partidos políticos foram banidos. O Congresso Nacional foi fechado. Muita gente foi exilada, obrigada a viver no Exterior para não morrer.
É essa desgraceira toda que o vice-prefeito de Franca aplaude e saúda. Nas linhas que dedica a celebrar o golpe de Estado, em nenhum momento Everton de Paula lembra os mortos, o Congresso fechado, o fim da eleição direta, os perseguidores, os desaparecidos nos porões fétidos. Seu gesto precisa ser repudiado porque é indigno, especialmente considerado o cargo que ocupa.
Tivesse sido minimamente honesto do ponto de vista intelectual, o professor poderia ter lembrado pelo menos parte do que houve, e tido a coragem, que também falta a ele, de dizer que apesar das mortes, da tortura, dos fuzilamentos, dos exílios, da censura, ainda assim ele acredita que tenha sido válido. Pelo menos, teria demonstrado um mínimo de decência. As ideias de Everton deveriam ser combatidas com a mesma intensidade, mas pelo menos, ele mereceria respeito. Nem isso o post dele permite, porque é um delírio, sem nenhum pé na realidade.
Fico com frio na espinha de pensar na hipótese de, por qualquer razão, Everton de Paula assumir a prefeitura de Franca. Se ele não tem condições de relatar nem mesmo o que houve há 58 anos, o que dirá do enfrentamento dos problemas da cidade, de suas complexidades, da necessidade de ser inclusivo e governar para todos, e não apenas para os cristãos de extrema direita como ele. Seria um pesadelo.
Desejo, fortemente, que o prefeito Alexandre Ferreira mantenha sua saúde em dia, não se exponha a riscos e nem pense em transmitir o cargo ao vice. A este, torço para que um dia qualquer o Deus que ele tanto menciona ilumine a sua cabeça e coloque o mínimo de compreensão histórica – e misericórdia – dentro dela. Faço figas também para que ele se mantenha calado, recebendo o bom salário de que desfruta. Pode ser muito pelo que faz, mas é pouco para o bem da cidade. Franca precisa de muita coisa – só não precisa de um Everton de Paula a governá-la. Nem hoje, nem nunca.
Corrêa Neves Jr é jornalista e editor do GCN.