24 de dezembro de 2025
CRÔNICA

A dama das bromélias

Por Sonia Machiavelli |
| Tempo de leitura: 4 min

Um dos primeiros botânicos e etnógrafos brasileiros, Barbosa Rodrigues (1842-1909) estudou a relação entre a linguagem dos índios e o léxico do reino vegetal. Foi pioneiro ao observar que os nativos nomeavam as plantas  depois de acurada observação e seguindo um inteligente método de classificação que elegia caracteres de folhas, flores, frutos, ou de propriedades como cor, cheiro, sabor, consistência, duração, emprego. A qualidade mais abrangente designava o gênero. Depois, este era dividido em  quatro grupos: ybá (madeiras de lei), ibirá ou muyrá (paus), kaa (ervas) e icipós ou cipós (trepadeiras). Para designar um grupo  usavam a palavra tyba/tuba. Os componentes da planta recebiam nomes específicos: raiz (sapó), tronco (upi), folha (ob), flor (iboty), galho (takang), fruto (uá, îuá, ybá), semente (ayin), espinho (îu).

Pela lógica dos empréstimos ao nosso idioma, a bromélia deveria se chamar “karagwatá”. Kaa, planta + rákua, ponta + atá, dura.  Ou seja, “planta de ponta dura”. Mas esse nome descritivo criado pelos nativos permaneceu vivo apenas até meados do século 18, embora possamos reconhecê-lo no topônimo Caraguatatuba, literalmente “lugar de muitas bromélias”. Por qual razão a palavra original se perdeu se a maioria dos vocábulos referentes à nossa vegetação se manteve atravessando os séculos como manacá, maracujá, ipê, angico, caju, abacaxi, ananás, guapuruvu e centenas de outros? 

Explica-se. Antes de 1703 as bromélias já tinham chegado à Europa. Foi nesse ano que o botânico Charles Plumier resolveu cunhar um nome para a planta exótica. Escolheu “Bromélia”, homenagem a Olof Bromelius (1639-1705), o botânico mais famoso da Suécia antes de Lineu (1707- 1778), ambos professores da Universidade de Upsalla. Lineu, no seminal “Species Plantarum” (1753), manteve a homenagem e popularizou o nome do colega. Todos eram admiradores das bromélias.

No Brasil temos 1300 espécies, das quais 1150 são endêmicas. Para estudá-las, uma botânica inglesa, Margareth Mee, esteve várias vezes na Amazônia e seu legado se tornou tão importante para a botânica como para a arte. Nascida em 1909, diplomada pelas melhores escolas da Inglaterra em pintura e design, mudou-se com o marido para o Brasil no pós-guerra, aceitando o convite da Escola Britânica de São Paulo para ali lecionar. Entusiasmada por nossa natureza, integrou grupos de pesquisa do Instituto de Botânica e foi para a Amazônia em 1964, ano do golpe militar que mergulhou o país na ditadura.

No interior da floresta, sua imagem de mulher delicada e de pele muito branca contrastava com o ambiente selvagem. Ela voltou mais quatro vezes, desenhou e pintou as plantas que viu. Ao todo, criou quatrocentas pranchas em guache e quarenta desenhos. Escreveu quinze diários nos quais relatou sua vida na floresta e com os índios. Também registrou as dificuldades encontradas no país governado por militares. Por outro lado, houve muitas alegrias, como conseguir ver o desabrochar da “flor da lua”, que só acontece uma vez ao ano e em noite de lua cheia. Documentou em fotos e imagens o acontecimento. Desenhou a flor. Esse episódio inspirou o documentário “Margareth Mee e a Flor da Lua”, de 2018, com Carla Camuratti. Dirigido por Malu Martino, pode ser visto no Youtube.

Em 1988 Margareth Mee voltou à Inglaterra onde tinha negócios a resolver. Pretendia retornar logo, pois sua paixão pelas bromélias e pela Amazônia a movia. Seu propósito era usar o conhecimento tanto artístico quanto científico para registrar através de suas obras o maior número possível de espécies brasileiras raras. Desejava proteger e conservar a flora única no planeta, a qual corria riscos devido ao desmatamento que já atingia alguns biomas brasileiros. Ela já intuía o que viria nas décadas vindouras. Mas um acidente de carro atropelou seus planos, ceifou sua vida.

Em sua honra foi fundada a "Margaret Mee Amazon Trust", organização para educação, pesquisa e conservação da flora amazônica, promovendo intercâmbio para estudantes de botânica e ilustradores de plantas brasileiras desejosos  de estudar no Reino Unido  ou conduzir pesquisa de campo no Brasil. Em 1994 ela foi homenageada pela Escola de Samba Beija-Flor de Nilópolis, cujo enredo, assinado pelo carnavalesco Milton Cunha, teve  por título “A dama das bromélias”.

Ao ler que o Governo e o Congresso brasileiros chegaram ao fundo do poço da irresponsabilidade ao aprovar na semana passada a urgência do projeto de mineração em terras indígenas na Amazônia, penso que Margareth Mee, que dedicou mais da metade de sua vida à documentação e à defesa da biodiversidade da flora amazônica e à conservação de seus ecossistemas, se revirou em seu túmulo em Seagreve.