16 de julho de 2024
GAZETILHA

A tragédia e a farsa

Por Corrêa Neves Jr | editor-chefe do GCN
| Tempo de leitura: 10 min

“A história se repete, a primeira vez
como tragédia, a segunda como farsa”
Karl Marx
, filósofo alemão

Não faz nem três semanas que o mundo acompanha, atônito, a invasão da Ucrânia por tropas russas – muito superiores numericamente, muito mais equipadas, incontáveis vezes mais letais. Tudo tem acontecido apesar das inúmeras negativas feitas pelo governo russo, nas semanas que antecederam o início do conflito, de qualquer intenção de lançar suas tropas contra a Ucrânia.

Putin e seus asseclas só faltaram jurar que nada aconteceria. Tentavam convencer o mundo de que o imenso deslocamento de tropas que faziam rumo ao oeste era apenas parte de exercícios militares combinados com Belarus. Joe Biden, o presidente americano, repetia dia após dias que informações de inteligência apontavam para a invasão iminente; Vladimir Putin rechaçava e insistia que a versão americana era um delírio. Não é preciso ser gênio para concluir quem estava com a razão sobre a guerra iminente.

Quem conhece um pouquinho de história está chocado com as cenas na Ucrânia, mas não está surpreso. Basta olhar para o que aconteceu na Europa no prenúncio da Segunda Guerra Mundial para notar inacreditáveis semelhanças com o que se desenrola hoje.

Naquele tempo, na segunda metade dos anos 30, enquanto Hitler multiplicava os gastos militares da Alemanha nazista, basicamente todo mundo preferia fazer vistas grossas. Isso incluía o Brasil, presidido por Getúlio Vargas; os Estados Unidos, comandados por Franklin Roosevelt; e muito mais importante naquele tempo, toda a Europa, o que incluía a União Soviética.

Parecia conveniente a todos, especialmente por razões econômicas, deixar de lado as esquisitices, ainda que começassem a ficar sérias demais, protagonizadas por Hitler, líder de extrema direita religioso, vegetariano, amante de animais, dono de um ridículo bigode e que se notabilizaria nos anos seguintes como um dos mais sanguinários genocidas de todos os tempos.

Naquele momento da história, um único homem, já com mais de 60 anos, ousava levantar a voz. Apenas o então deputado inglês Winston Churchill, que vivia o ocaso na política britânica, se insurgia em inflamados discursos no parlamento, em artigos publicados em jornais, e em quaisquer conversas para as quais fosse convidado, contra o que se desenrolava na Alemanha. Churchill alertava, semana após semana: Hitler era pior que o demônio, a Alemanha um risco, e o mundo deveria se unir para barrar a ameaça nazista antes que fosse tarde demais. Não foi ouvido por ninguém.

A partir de 1938, Hitler acelera seus planos. O primeiro ato foi a anexação da Áustria, sua pátria Natal. Seus argumentos? Áustria e Alemanha formariam um só povo, parte do Grande Império Alemão, tinham a mesma língua e origem, e deveriam se unir num novo Reich (Império). Convocou o primeiro-ministro da Áustria, Kurt Von Schuschnigg, para “conversas” em fevereiro de 1938, que na verdade se resumiram a um ultimato. “A Itália? Estou de completo acordo com Mussolini. A Inglaterra? Esta não moverá um dedo pela Áustria. A França? A França poderia ter detido a Alemanha na Renânia e então teríamos de nos retirar. Mas agora é muito tarde para a França. Dou-lhe novamente pela última vez a oportunidade de chegar a um acordo, Herr Schuschnigg. Ou encontramos uma solução agora ou então os acontecimentos seguirão seu curso. Pense a respeito, Herr Schuschnigg, pense bem. Posso apenas esperar até esta tarde”, ameaçou Hitler.

Um mês depois, Hitler ocupou a Áustria, sem resistência. Traído por seu próprio gabinete, Schuschnigg renunciou e foi organizado um “plebiscito”. Cerca de 97% da população “votou” pela anexação à Alemanha. Como Hitler previra, nenhuma nação europeia impôs qualquer obstáculo ao avanço nazista e a Áustria deixava de existir como nação independente.

Setenta e seis anos depois, em uma ação muito parecida com a de Hitler, Putin também tomou para si a Criméia, parte da Ucrânia, em 2014, sob argumentos parecidos. Os habitantes da Criméia seriam russos, gostariam de ser independentes e caberia a ele ajudar. Depois de declarar a independência, a Criméia “opta” por ser anexada à Rússia. Assim foi feito. Também como acontecera em 1938, ninguém reclamou mais grosso, a não ser a Ucrânia. Houve algumas pequenas sanções à Rússia, mas nada que causasse maiores constrangimentos a Putin, seu governo ou aos bilionários que apoiam Moscou.

Iludidos e, ousaria dizer, também imbecilizados, líderes europeus de dez anos atrás acreditavam apenas no diálogo com Putin, assim como seus antecessores dos anos 30-40 acreditavam em conversas com Hitler.

Naquele distante 1938, depois da anexação da Áustria, uma conferência foi realizada entre Inglaterra, França, Itália e Alemanha, as maiores potências de então, para “buscar a paz”. O “Acordo de Munique”, como acabou batizado o resultado, foi assinado em 29 de setembro de 1938. Previa que a Checoslováquia, país recém-criado, seria obrigado a ceder uma parte de seu território, os Sudetos, para Hitler, onde viviam 3,2 milhões de alemães, cerca de 35% da população total da região. Em contrapartida, Hitler garantia que não reivindicaria mais “nenhum território na Europa”. Assinaram o documento Benito Mussolini, pela Itália; Adolf Hitler, pela Alemanha; Édourd Deladier; pela França; e Neville Chamberlain, pelo Reino Unido.

Chamberlain, desafeto de Churchill, voltou para a Inglaterra dizendo que a “paz no nosso tempo” estava garantida. Comemorou. Tripudiou. Churchill seguia sozinho dizendo que o acordo era um erro, que Hitler o ignoraria e quando o resto do mundo percebesse talvez fosse tarde demais.

“A paz no nosso tempo” de Chamberlain durou apenas um ano. No início de setembro de 1939, uma semana depois de Alemanha e União Soviética assinarem o pacto Molotov-Ribbentrop, que previa que os dois países não se atacariam em caso de guerra contra qualquer outro, Hitler invadiu uma parte da Polônia. Dias depois, a União Soviética tomou a outra. Um mês decorrido, a Polônia havia caído completamente. A Alemanha contou inclusive com a ajuda de equipamentos americanos, exportados dos Estados Unidos via Espanha, para que a campanha militar fosse vitoriosa. Com a queda da Polônia, começava o flagelo dos judeus, segregados em guetos e depois exterminados, e o terror na Europa.

França e Reino Unido até declararam guerra à Alemanha, mas não chegaram a se engajar completamente naquele instante no conflito, mais ou menos como o mundo faz hoje com o ataque de Putin à Ucrânia. Chamberlain, inacreditavelmente, continuava tentando “diálogos de paz”, mesmo depois de Hitler ter rasgado o que acabara de assinar. O resto da história, é conhecido.

Os Estados Unidos só entrariam na guerra dois anos depois, em 1941, quando o Japão atacou Pearl Harbour. A esta altura, a França já tinha sido conquistada, a Europa estava completamente sob domínio nazista e Churchill, eleito primeiro-ministro do Reino Unido, liderava os esforços contra o Reich nazista. A ilha britânica era a única porção da Europa (exceção feita a Portugal e Espanha, indiferentes a Hitler) que não estava sob jugo alemão.

Até que Hitler fosse finalmente derrotado, o füher alemão rasgaria outros acordos, como o que firmara com Moscou, e invadiria a União Soviética; exterminaria milhões de judeus, gays e ciganos; e dezenas de milhões de militares e civis morreriam em sangrentas batalhas.

Vê-se, hoje, que não aprendemos muitas lições desde então. A história mais uma vez se repete. Há apenas trinta anos, Rússia, Inglaterra e Estados Unidos assinaram um acordo com a Ucrânia onde se comprometiam a jamais invadir e a respeitar as fronteiras da Ucrânia, em troca do país abrir mão de suas 1.800 ogivas nucleares. A Ucrânia cumpriu sua parte no acordo, mas Putin já invadiu o vizinho duas vezes. Sabe-se que a palavra do líder russo vale tanto quanto uma nota de 3 reais. Por que, então, o mundo assistiu impávido sua escalada de ódio?

Impossível saber para onde caminha o conflito, mas é certo que, sozinha, a Ucrânia não resiste. É provável que um acordo seja firmado, mais por conveniência do que por necessidade dos russos, mas e depois? Putin ameaçou invadir a Suécia e a Finlândia e neste final de semana bombardeou a fronteira com a Polônia.

Claro que não há apenas semelhanças entre o atual momento e os eventos pré-Segunda Guerra Mundial. Algumas diferenças são importantes também. A mais decisiva delas, o fator nuclear.

Hitler não tinha bombas atômicas, Putin tem. Não uma, nem 100 – tem precisamente alguma coisa entre 6.200 a 6.800 artefatos, suficientes para destruir o mundo inteiro umas cem vezes (há quem fale em 20 vezes, há quem diga que seriam 50 vezes, mas pouco importa – basta destruir uma única vez que é o fim para todos nós). O líder russo já disse que ele não perde esta guerra. No pior cenário, ele alertou, empata. Ou seja, claramente ameaça acionar o arsenal atômico se estiver em desvantagem no conflito convencional. Ou ele ganha, ou perdemos todos. Não é uma equação fácil de resolver.

Se Putin tem a seu favor o arsenal nuclear, tem contra si o mundo globalizado, a imprensa livre, as redes sociais e, importantíssimo, as sanções econômicas e boicotes de empresas.

As imagens do conflito, em tempo real, têm emocionado o mundo. Os milhões de ucranianos indefesos que fogem das bombas chocam populações em todos os continentes. Até mesmo na Rússia, onde quem protesta contra o governo pode ser condenado a 15 anos de cadeia, multiplicam-se as manifestações contra a guerra – e contra Putin. A firmeza de caráter do líder ucraniano Volodomir Zelensky, que tem resgatado em seus pronunciamentos muitos dos alertas feitos por Churchill, de quem é admirador, tem inspirado a resistência em seu país e feito com que o avanço russo seja muito mais lento do que o esperado, o que também gera reveses inesperados para Putin.

Mas nada tem surtido tanto efeito quanto as sanções econômicas – tanto as impostas pelos governos ao redor do mundo, quanto as adotadas por empresas de todas as partes. Quase ninguém quer estar junto de Putin – com exceção de gente como Bolsonaro, que num arremedo de Vargas, ensaia uma perigosa “neutralidade”, como se fosse possível não tomar partido diante da barbárie.

Mais de 300 empresas já interromperam suas operações na Rússia. Não se assiste por lá mais canais de streaming, não se compra com cartões de crédito, a bolsa não funciona porque o valor das ações despencou, os aviões russos não passam por manutenção nem podem sobrevoar quase nenhum país, não se come McDonald’s e por aí vai... Putin deve ter previsto muita coisa – inclusive, as sanções. Mas duvido que tivesse antecipado o tamanho do boicote promovido de tantas empresas.

Neste instante, o melhor a fazer é torcer por um acordo que preserve as vidas na Ucrânia, sem repetir os erros de Chamberlain, Deladier, Robbentrop, Stalin, Roosevelt, Vargas e tantos outros que acreditaram em Hitler: Putin não é confiável, a Rússia não é uma democracia e, ainda que assine um acordo, nada indica que vá cumpri-lo por muito tempo.

É preciso que existam condições para que eventuais escaladas de tiranos mundo afora não aconteçam mais ao arrepio do controle global. É inadmissível que por interesses econômicos as nações permitam que títeres se eternizem no poder, subjuguem suas populações e depois partam em delírios expansionistas. Talvez seja possível parar a Rússia hoje, mas Hitler não foi o primeiro, nem Putin será o último. Um rearranjo global precisa ser forjado para que nossa própria existência não fique à mercê dos delírios de um lunático de plantão.

Diferente do que pensa o presidente Jair Bolsonaro, a neutralidade nunca é válida – e num conflito nuclear, jamais teria alguma serventia. As bombas atômicas que explodiriam em qualquer lugar do mundo nos atingiriam em semanas – ou dias. Nada sobrevive a uma hecatombe. Nem esquerdistas, nem direitistas. Nem conservadores, nem liberais. Uma guerra nuclear é o fim – para todo mundo.

Corrêa Neves Jr. é jornalista e editor-chefe do GCN.