16 de julho de 2024
OPINIÃO

Licença?

Por Lúcia Helena Maniglia Brigagão | especial para GCN
| Tempo de leitura: 3 min

Bato à sua porta, permita-me novamente entrar em sua vida.

Faz tempo, eu sei. Também senti falta. Queria novamente conversar com você, contar sobre agruras e algumas venturas que experimentei durante o intervalo transcorrido entre nossa última conversa publicada e este momento. Confesso, durante tal intermitência, passei maus pedaços – mas não fui a única. Todos temos relatos desse tipo para oferecer. Todavia alternei momentos de alegria, ventura, com outros, até de felicidade, não vou negar.

Olho ao redor, vejo quantos filhos se tornaram órfãos, por mais cuidado e proteção que os pais tivessem. Quantos perderam filhos, alguns no auge da juventude, por causa do mesmo mal. Irmãos, irmãs que partiram sem despedida. Familiares distantes e próximos. Pura catástrofe: avalio pelos acontecimentos vividos na minha própria família.

Em casa, tomamos cuidado, muito cuidado. Assepsia, isolamento, proteção. Tudo dentro do protocolo. Mas o bicho conseguiu romper a barreira, entrou talvez pela porta principal, quem sabe? se alojou e fez seu estrago. Vieram sintomas claros de que nosso barco perdera o controle. Aquele homem forte, aparentemente saudável, começou a mostrar sinais desastrosos e alarmantes. Febre intermitente, tosse, dificuldade de respirar. Assombro e medo.

Procuramos recurso, exigiram exames. Resultado positivo. Deveria passar por atendimento médico especializado. Aí, entrou pela porta do hospital amparado por um filho e por mim. Não foi por livre e espontânea vontade. Foi coagido, empurrado, emburrado, a contragosto e morto de medo. Era domingo à noite. Não pudemos acompanhá-lo daí para frente, mas conversávamos pelo celular. Na terça, nosso último diálogo, sua voz embargada e triste: “Meu bem, perdemos esta batalha.

Vão me intubar.” Foi nossa derradeira conversa. Não teve despedida, não teve palavras de alento, de amor, de esperança. Nada. Dali para frente, sedado, mostrava sinais que interpretávamos como de reação ou algum entendimento: a nosso pedido, à guisa de resposta, apertava nossa mão, piscava os olhos. Era nosso desejo de vê-lo reagir? Era nossa imaginação? Era nossa vulnerabilidade? Nosso medo? Nosso desejo falando mais alto? Nunca irei saber.

Os filhos que moram distante, já estavam próximos. Pela primeira vez, em muito tempo, tínhamos a família reunida à sua volta. Rezamos muito, pedimos muito, pessoas distantes se manifestaram; pessoas próximas se avizinharam mais. Embalde. Ele nunca mais nos olhou nos olhos, ele nunca mais proferiu uma palavra sequer. Ele nunca mais passou a mão pela minha cabeça. Nunca mais sorriu para um filho. Não mais me afagou as costas, como para me proteger. E se foi mansamente, naquela tarde avermelhada, depois da tempestade.

Perdi meu chão. Perdi meu companheiro. Perdi meu amante calmo e devotado. Perdi quem me amparou sempre que preciso: perdi minha proteção, meu escudo. Os filhos perderam o pai mais dedicado, atencioso e carinhoso que poderiam ter. Os amigos perderam parâmetro de lealdade, honestidade e atenção; os netos, o avô mais amoroso que poderiam conhecer. Todos saímos perdendo com sua partida.

No início foi por medo que me afastei de tudo. Me senti vulnerável e desprotegida, frágil e impotente diante dos acontecimentos todos. De repente já não era a supermulher que supunha ou sempre imaginei ser. Sentia-me coagida, escondia-me e estava apoiada e resguardada por leis e determinações que não aprovava, mas era obrigada a cumprir. Logo em seguida, veio a doença novamente bater à porta, atacar filhos, noras, eu própria, netos, isso depois de matar meu marido, ameaçar amigos e acachapar minha arrogância.

Sobrevivi.

Recentemente dois acontecimentos, quase simultâneos, cutucaram minha letargia. Dois leitores comentaram pessoalmente minha ausência e sugeriram que eu voltasse à ativa. Não se conhecem e eu sou o elo, o vínculo entre eles, através dos meus textos. Um, o profissional que acompanhou instalação de vidros na minha residência; outro, chofer do aplicativo Uber que conhece e é coetâneo dos meus filhos.

Com ambos, no diálogo que se seguiu após eles me reconhecerem e me chamarem pelo nome, honrosamente citaram alguns dos meus trabalhos. Agradeço ambos e atribuo a eles o impulso dado ao meu retorno à escrita. Foi por acaso, me pergunto, ou há mais entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia?

Até a próxima.