Fecho o livro e fico pensando em como defini-lo. Travessia Custosa, de Sônia Machiavelli. Um dia ouvi-a dizer: “os gregos inventaram tudo...” Fiquei triste. Com o passar dos anos percebi que eles inventaram tudo porque registraram, e o registro é a ideia mais fantástica que os humanos inventaram. É neste caminho que Travessia Custosa se mostra - um registro desse nosso penoso tempo de pandemia, esse átimo de tempo em peste.
Nesta obra Sônia capturou o momento de forma sutil, relatando medos pessoais e dúvidas, incertezas, ignorâncias e espertezas. “As ruas aglomeradas de gente inocente, ignorante ou dominada”, pelos espertos que da ideologia fazem uso a causar o caos. As sutilezas ficam por conta de comparativos mais nobres – as flores, essas gotas do divino que mostram o lado delicado de Deus; também da música e da literatura-dons sublimes, de grau incontestável.
Na dualidade entre Ciência e resistência a autora vai delineando sua posição. E algo é certo, estamos todos no mesmo barco. Há bons e maus humanos, e muitas vezes somos guiados pelos maus. Não há como descartar a crítica política nesta obra. Registre-se: o governante é mau, descrê de evidências, numa biopolítica cujos danos são evidentes, numa redundância circular e desprezível. Estão dados os nomes aos bois, e a toda a boiada, aliás. Apesar de estarmos todos no mesmo barco, uma parte mínima segue na proa, outra parcela considerável vai pelo bombordo, outros, ainda permanecem no estibordo. A dúvida é lançada pelas palavras de Montaigne: seremos mesmo superiores? Poderíamos, sugere a autora, seguir o exemplo das plantas: viver de forma cooperativa, descentralizada e não hierárquica. Por que não aprendemos?
Um formigueiro na terra, milhões de estrelas no céu, o mistério nas entranhas da terra, o mistério na vastidão do infinito. Para desvendar a ambos, a Ciência é a vocação do homem. A autora não tem dúvidas: “não sou cega”. Guia-se pela Ciência, posto que esta se debruça sobre si mesma, se corrige, se contorce, se acumula, se descarta, se supera. È infinita como Deus.
A decepção com o rumo político e o reflexo dele na sociedade leva a autora a sugerir uma saída: a volta á origem seria nos lembrarmos de quem somos, num Macunaíma revisitado. Somos plurais, nascemos plurais. Não há espaço para polarização e descrenças infundadas. Esta é a maior mensagem desta obra. Será na decisão, no cortar laços com as sombras da ignorância, a Travessia, enfim.
Um escritor se faz com o olhar que deita sobre as coisas, a ver todo o movimento perceptível no tempo e no espaço. Sônia Machiavelli, uma escritora completa.