27 de dezembro de 2025
PEDRO KAMORROTO

Vila das três cores

Por Pedro Kamorroto | especial para GCN
| Tempo de leitura: 5 min

Era uma tarde de sábado, no céu o astro do dia mostrara-se bastante impiedoso, despejara fogo e fúria sobre os corpos dos habitantes da Vila que carregava dentro de si três lindas cores – duas quentes (vermelha e amarela) e uma neutra (preta).

Bolso Furado, um dos naturais de facto e de jure da Vila tricolor, para contrapor a fúria do astro do dia tomou um banho mais demorado do que o habitual, limpou o seu corpo com uma toalha castanha, de seguida pôs os seus prestativos olhos sobre o calendário de um tal Gregório e viu que restavam poucos dias para o mês doze.

Nas lonjuras já se sentia o cheiro forte, atraente do natal a rasgar cirurgicamente a atmosfera daquela Vila.

Apesar da azáfama e dos gastos supérfluos que se registava no mês que viu nascer o mais querido dos meninos, era o preferido de Bolso Furado – um dos digníssimos habitante e filho da referida Vila.

Para ele, o mês doze é a data que o génio humano dissimuladamente desperta o bichano da solidariedade que há em si.

Bolso Furado, um sofrido professor, fazia do coração as tripas, ralava durante os restantes onze meses para proporcionar para si e para os seus um natal grávido de requinte e glamour, digno de roubar a acuidade visual do inglês. Fartura sobre fartura.

A situação social naquela circunscrição geográfica era histérica, sofria de antipatia crónica, tinha cara de pouquíssimos amigos, a inflação galopava a largos passos, a vida custava prada, mas nem com isso demoveu o surrado professor de adentrar no espírito supérfluo do natal, de preparar com as circunstâncias e pompas todas a quadra festiva e do ano que se antecipava novo em folha de mafumeira.

“Em sessenta e um aqui na vila das três cores foi pior. Quem tiver duvida é só enviar por email uma carta rogatória ao mestre Kamosso do hungu ”. Aguardar pacientemente pelo santo deferimento – dizia ele para os seus digníssimos e prestativos botões.

Era como se escrevesse pelo seu próprio punho, à mão tratados enciclopédicos em sua legítima defesa.

Por isso custasse o que custasse, partisse ou rachasse, fosse o que fosse, o professor via-se na obrigação de garantir uma farta consoada para os seus familiares.

Era como se vivesse só para isso.

Há pessoas que grunhem por um Natal e Bolso Furado era o exemplo mais expressivo. Não era excepção à essa estranha regra.

“Onze meses a molhar a camisola com suor, a inalar o pó do branco giz, era chegado o momento da prova de proficiência em língua natalina. Era o momento da teoria de amostragem dos bons resultados.”

“Onze meses a molhar a camisola com suor, a inalar o pó do branco giz para depois não festejar o vigésimo quinto sol dezembrino – só se passarem por cima do meu cadáver. Não se trata de mim” – vociferou Bolso Furado.

“Deveis saber que se trata de outra pessoa. O Natal é o meu troféu olímpico.

Todos os dias conquisto trabalhando. O Natal tem um grande significado na minha vida, só eu sei o quanto me é prestigiante”.

“Juro de pés colados que darei os meus dois rins, caso um dia virem que não entrei de corpo e alma no espírito natalino. Mas garanto-vos à luz dos custos todos que isto nunca será possível. Conhecendo como me conheço nem na próxima encarnação”.

Há coisas que se nos destinam, o Natal é o meu amor de perdição.

Já tenho uma barriga avantajada, barba cor de neve, mas se na encarnação que se aproxima for o Papoite Natal – me darei por satisfeito. Será como o realizar de um sonho há muito preconizado.

Só me falta já as vestes saunas do Papoite  Natal para sair por aí, em todos cantos da Vila das três cores realizar desejos. Não me importo com o clima tropical que se abate sobre o tecto de zinco da Vila, nem que deixar fritar, deixar torrar as minhas vísceras, sabe sempre bem fantasiar-se de Papoite Natal, oferecer os embrulhos da praxe, saco das prendas de boas festas.

Caso consiga ser o papoitão Natal oferecerei algo que marcará para todo o sempre os digníssimos habitantes da Vila.

Transformarei o Natal numa efeméride diária. Todos os diabos dias serão de quadra festiva, não só realizarei natais solidários aos meninos que têm a rua como lar, como também os tirarei daí para sempre.

As crianças nunca deviam conhecer o pior, a miséria legatária dos adultos.

Caso consiga ser o bom samaritano lhes devolverei a dignidade de serem novamente, mas desta vez para valer, futuros da Vila, garantia de um amanhã melhor.

Em vez de mimar e armar-lhes com brinquedos dar-lhes-ia lápis e cadernos.

É com essas armas pacíficas que se vai à guerra o horizonte com os olhos de ver.

Quem sonega lápis e cadernos está à partida a ocultar e a causar escassez severa de toda uma gama de outros direitos.

Era um facto consabido na Vila a obsessão que Bolso Furado tinha pelo natal e toda simbologia em volta do mesmo.

Desde que se conhece como gente não há nenhum vinte e cinco de dezembro que se lhe escapou.

Instrumento musical de corda angolano, também conhecido em outras paragens como berimbau.

Pai.

Aumentativo de Pai. Paizão

Pedro Kamorroto nasceu e reside em Luanda, Angola. Licenciado em Engenharia de Telecomunicações, tem seus textos publicados no Jornal de Angola, nas antologias Sementes da Língua Angola-Galiza, Escritos de Quarentena, Crônicas de Arruaça no País das Maravilhas da revista Palavra & Arte. Também escreve para a revista Soletrar através da oficina literária organizada por Gociante Patissa. Para conhecer mais do trabalho literário de Pedro Kamorroto acesse seu perfil.

O especial Conto de Natal angolano no Caderno Nossas Letras publica em dezembro 4 narrativas com a curadoria de Baltazar Gonçalves, professor e escritor-membro da AFL (Academia Francana de Letras).