24 de dezembro de 2024
GAZETILHA

Sabores da Franca

Por Corrêa Neves Jr. | Editor-chefe do GCN
| Tempo de leitura: 10 min

“Todos os homens se nutrem,
mas poucos sabem distinguir sabores”
Confúcio
, filósofo chinês

Poucas coisas são tão intrinsecamente conectadas à nossa memória afetiva quanto os sabores que experimentamos ao longo da vida. Quase sempre, junto com a imagem que guardamos de momentos que nos são importantes até hoje, estão cheiros, gostos, sensações. É muito comum que nos lembremos perfeitamente da praia onde comemos um peixe inesquecível. Da padaria que ficava perto da casa da avó e que tinha um suspiro sem igual. Do hambúrguer que um amigo querido fez num encontro qualquer. Daquele spaghetti que provamos num minúsculo restaurante com jeitão de boteco durante pausa na exploração de uma cidade que visitamos pela primeira vez. Do lanche da escola. Da sopa que a mãe preparava para nos fortalecer diante dos resfriados.

De Franca, cidade onde nasci e que completa hoje 197 anos, carrego inúmeras memórias afetivas – muitas delas, cheias de sabores. Já dividi com os leitores que me acompanham algumas, em textos que tratei de restaurantes e bares tradicionais, de pratos que são marcas registradas de nossa cidade, e por aí vai...

Mas como para mim é impossível celebrar uma data sem me lembrar dos sabores que me remetem a ela, resolvi fazer hoje um resgate diferente. Uma lista personalíssima, e espero que curiosa para o leitor, de lugares em Franca onde comemos ou bebemos coisas que, num primeiro momento, no mais das vezes, não seriam nossas primeiras opções para provar por ali.

Reforço, desde já, que não tenho a pretensão de elencar “as melhores” surpresas e muito menos de apontar “os piores” lugares. São apenas registros carinhosos de comidas e bebidas que, em algum momento, me surpreenderam – e, em muitos casos, seguem me surpreendendo até hoje. Diz respeito a mim, minha família e amigos, minhas referências e histórias, e tenho certeza de que cada leitor tem a sua. Tenho a mais absoluta certeza, a de cada um de vocês é tão saborosa quanto a que compartilho.

Comecemos o passeio pela Tenda Árabe, casa especializada comandada por Michel, Renata Aoude e o filho, Rafael. Todo mundo sabe que comida libanesa é o forte da Tenda, o que resta óbvio e redundante. Mas para quem gosta de variar, encontra-se ali uma coxinha esplêndida, crocante, sequinha como poucas. O tamanho é perfeito e, se você der sorte – ou tiver um pouquinho de paciência - vai conseguir uma que está saindo da fritadeira. É impecável. Ficaria perfeita se fizessem também sem requeijão, completamente dispensável diante do primor da massa e do recheio. É imperdível também a torta de frango, molhadinha, levemente apimentada, e os tomates confitados, assados lentamente e vendidos em potinhos – nada a ver com os batidíssimos tomates secos, que já cansaram e são todos iguais, não importa onde você peça.

Sobre a Tenda, cabe revelar um pequeno segredo: as esfihas de carne da Tenda são fechadas, mas se você ligar um pouco antes, pedir para o Michel e a Renata não estiver com a brigada da cozinha já exausta, ele faz, seguindo a melhor tradição do oriente médio, abertas. Na origem, as esfihas de carne são sempre abertas, não importa se feitas no Líbano, na Síria ou na Armênia, e Renata consegue reproduzi-las à perfeição.

No Nonno Grill, churrascaria comandada pelo grande Guidão e sua equipe, as carnes são o grande objetivo de qualquer frequentador. Merecido, mas mesmo um vegetariano sairia feliz depois de se aventurar pela pista fria, de longe a melhor da cidade. Mas o que realmente é singular na tradicional churrascaria, pelo menos para mim, é o cappuccino. Tinha tudo para dar errado. Na Itália, origem da bebida, cappuccino é bebida que se serve apenas até as 11h. Nunca, depois de uma refeição, ainda mais se for pesada. Mas funciona no Nonno Grill. E o cappuccino do Guidão, sei lá fruto de qual bruxaria, é fantástico. Espesso, cremoso, quente, te faz sair da mesa com uma dose extra de alegria – ou, no caso da minha mulher, Milena, com três ou quatro doses. É um grande prazer. Às vezes, e sem nenhum menosprezo pelas carnes, ainda maior do que o próprio churrasco.

No Azul, das chefs-irmãs Adriana e Lelê Mendonça Ribeiro de Souza, saem primorosas refeições, que garantem ao restaurante a fama de servir a melhor e mais sofisticada comida da cidade. É justa. O que é injusto é ver algumas pessoas dispensarem o couvert. Sempre que estou por lá e vejo algum vizinho de mesa fazer isso, tenho vontade de gritar: “nããão!”. Claro que as entradas são ótimas, os pratos idem, as sobremesas também. Mas o couvert - normalmente um pão quentinho, acompanhado por uma espécie de coalhada seca, uma manteiga de ervas, uma fatia de pão de linguiça, umas tiras de “pão-pizza”, às vezes abobrinhas fatiadas com precisão de raio laser e embebidas em azeite - é inacreditavelmente bom. João, meu filho, ama. Já disse para a Adriana que qualquer hora vamos nos sentar lá, pedir vinho e couvert de entrada, outro couvert de prato principal e mais um couvert de sobremesa. Tenho certeza de que sairemos felicíssimos. Não precisa de mais nada.

Na cafeteira Lebekke, uma pâtisserie francesa em plena avenida Presidente Vargas, sobram doces incríveis, frutos do trabalho árduo e do talento da Nelise, proprietária, que tem no chocolate artesanal – ela mesmo faz, a partir do cacau, fato raríssimo em Franca – o grande trunfo. Mas para mim, ainda mais marcante do que os mil folhas, pain au chocolatcremes brullés e afins são os mini-pães de queijo. São vendidos em pequenas porções. Delicadíssimos, tem tamanho pouco maior do que uma pipoca, e podem ser recheados com presunto e queijo. Chegam quentinhos, fumegantes, à mesa. Uma perdição.

Já que o assunto é pão de queijo e você, como eu, é louco pela iguaria com a qual os mineiros presentearam o mundo, vale a pena ir na pequenina padaria San Siro, pertinho da Câmara Municipal, para experimentar o que fazem. Há três versões: o normal, o mineiro e o de provolone. Este último é o que arrebata. Nas manhãs de sábado, pego quentinho, com as lascas de parmesão incrustadas na pequena pelota de polvilho. Fantásticos. E olha que por ali o pãozinho francês também é incrível, crocante. Mas imperdível mesmo é o pãozinho de queijo de provolone. De comer rezando.

Na feira-livre, os pastéis são onipresentes e não é de hoje que atraem tanta fraguesia quanto os mamões, melões, tomates, berinjelas e bananas. Mas, da barraquinha da Ednalva e Valdir saem surpreendentes biscoitos fritos e bolinhos de chuva impecáveis, tão bons – ou ainda melhores – do que aqueles que a sua avó faria. Tudo é preparado na hora. O biscoito, comprido, sai esfumaçando. É um grande privilégio, porque dá trabalho, espirra e suja a casa de quem se aventurar a preparar. São raríssimos os lares onde alguém ainda se mete a fazê-los, mesmo em Goiás e Minas Gerais, de onde se originou a receita. Apesar dos bolinhos de chuva serem relativamente comuns, o da Ednalva atinge a perfeição, uma bolinha linda, macia, sapecada com um toque de açúcar e canela. Demais.

Poucas coisas são tão tradicionais e típicas de Franca quanto a Chaminé, lanchonete que ensinou gerações a encarar salgados como comida que pode, e deve, ser preparada com esmero. Para a absoluta maioria dos comensais, a Chaminé é sinônimo de coxinha com catupiry, mesmo porque foram eles os pioneiros. Ou do espetinho de frango. Muitos gostam do almoço executivo, com jeitão caseiro e boa relação custo-benefício. Tudo isso é bom, mas incrível mesmo, a ponto de emocionar, são as empadinhas de massa podre. Quem já fez – ou tentou - pelo menos uma vez na vida sabe como dá trabalho. A massa é difícil de fazer e suja a cozinha, o recheio não pode ser nem seco nem muito molhado, se não fica ruim... É uma maratona, e nem sempre se consegue completar o percurso. Na Chaminé, as empadinhas reinam diariamente, soberanas. São tão boas que deviam exigir uma oração prévia antes da primeira bocada. E se você não abre mão de um docinho para fechar uma refeição, esqueça os bombons, chocolates e quaisquer outras coisas industrializadas que vendam por ali. Peça logo um pastel de banana, maravilhoso.

O Chico Bigode é uma pastelaria, e nem tenho ideia de quantas centenas de pastéis saem das fritadeiras a cada novo dia. Respeito quem vai lá pelo pastel, mas admiro mesmo quem já descobriu que há mais e pede um enrolado de presunto e queijo. Não é saudável, não é light, mas é simplesmente delicioso. Com uma coca gelada e o molho de pimenta, fica soberbo. No dia da semana em que a dieta não for uma imposição, experimente. Depois, me diga o que achou. Aposto que vai adorar.

Na rotisserie Siciliana, o frango assado é a pedida mais popular. São centenas a cada final de semana, sequinhos, pele crocante e carne suculenta, o que é um resultado difícil de alcançar. Mas o melhor mesmo é o feijão tropeiro. Não adianta dizer que o da sua mãe, do seu tio, do seu primo é melhor, simplesmente porque não é – e nem dá para ser. Ë tão gostoso, e tão consistente, que sempre fico com a impressão de que a saudosa Maria Helena, fundadora, produziu umas 100 toneladas há uns trinta anos e continuamos comendo o “original”. O sabor nunca se altera, não fá falhas na execução, e o feijão é imbatível. Sempre que faço carnes especiais ou um churrasco – programa meio raro, hoje em dia, por conta da inflação de alimentos – pego logo uns 2 kg de tropeiro na Siciliana. É insuperável. Nunca comi outro melhor.

Como disse no início, esta é uma lista de lugares e surpresas que fazem sentido para mim e que não se esgota neste texto. Há sempre coisas diferentes surgindo, novidades que aparecem aqui e acolá... Mesmo no Ifood, dá para fugir da dupla hambúrguer-pizza e garimpar petiscos e quitandas interessantíssimos.

Minhas mais recentes descobertas no aplicativo incluem o melhor churros que já comi, do El Churrito, que consegue a proeza, considerável, de entregar porções na sua casa que chegam quentíssimas. Não sei qual a mágica, mas têm-se a impressão de que fritaram na sua garagem de tão frescos que chegam, acompanhados pelo clássico doce de leite ou por chocolate. Outra descoberta interessante é um lugar que faz empanadas, muito parecidas com as que comi na Argentina e no Chile. Chama-se Mayela e tem kits com as mais variadas quantidades. As de carne salteña, humita (milho) e frango são minhas preferidas.

Para terminar, indico o caminho a ser percorrido por quem gosta de viajar no tempo. Aqueles que tem mais de 30 anos certamente se lembram dos bolotas, os simpáticos carrinhos de lanche que eram uma das marcas registradas da cidade, destruídos pela visão estreita de um promotor de Justiça que parecia ignorar que comida de rua existe em toda parte. Nova York não seria a mesma sem os carrinhos de cachorro-quente e falafel; Paris perderia muito de seu charme sem os quiosques de crepes; na Itália inteira haveria revoluções se não fossem mais permitidos as barraquinhas de paninis, canolis e semelhantes. Mas em Franca, a tradição foi rompida sob a alegação de que não ofereciam banheiros, como se em qualquer outra parte do universo comida de rua fosse servida em locais com sanitários.

Se os bolotas te trazem boas recordações, dá para emular aquele tempo pedindo um bom e velho x-salada no Barba, que nasceu Noite Sem Pressa e hoje atende em dois endereços. É o mesmo lanche, com o mesmo gosto, apresentado da mesma forma. Nada de blends pretensiosos demais que normalmente sugerem muito além do que entregam. É um lanche clássico, atemporal, com gosto de um tempo que passou e que só pode ser alcançado na lembrança – ou em pequenas viagens como estas que os sabores nos permitem fazer.

Feliz aniversário, Franca! Que a partir do bicentenário que se aproxima possamos caminhar mais velozmente rumo ao futuro, mas sem esquecer de tudo aquilo que nos forjou e foi relevante para que chegássemos até aqui. Parabéns!

Corrêa Neves Jr é jornalista e editor-chefe do GCN.