24 de dezembro de 2024
GAZETILHA

A poeira, o periquito e o padre

Por Corrêa Neves Jr. | Editor do GCN
| Tempo de leitura: 10 min

“Tudo, aliás, é a ponta de um mistério, inclusive
os 
fatos.Ou a ausência deles.
Duvida?
Quando nada acontece há
um milagre que não estamos vendo”
Guimarães Rosa, escritor brasileiro

Quem é nascido em Franca, ou por aqui vive há pelo menos um ano, certamente sabe que algumas coisas muito singulares atingem nossa comunidade com uma frequência incomum. Não são poucos os fatos que, acontecidos ou vinculados à gente daqui, ganham projeção nacional – ou mundial. Alguns, como a escolha da empresária Luiza Helena Trajano como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela revista Time, nos enchem de orgulho. Outros, nem tanto.

A semana passada foi pródiga em notícias envolvendo Franca e que acabaram intensamente comentadas em todo o país.

Tudo começou no final da tarde de domingo passado, 26 de setembro, quando a chuva prevista pela meteorologia para refrescar a cidade deu lugar a um tsunami de terra que engoliu Franca. O fenômeno raro, conhecido como haboob, foi registrado também em Ribeirão Preto e outros tantos municípios da região e do triângulo mineiro, mas em nenhum outro lugar houve imagens tão impressionantes como aquelas que foram captadas na terra das Três Colinas.

Deu medo. Diante de vídeos e fotos que registraram o monstrengo de terra invadindo Franca, não foram poucos os que chegaram a pensar ter ouvido as trombetas do apocalipse. Parentes de conhecidos ligaram desesperados dizendo ter certeza de que era o fim dos tempos, a hora em que os virtuosos e os ímpios seriam confrontados no julgamento final.

Apesar do compreensível desespero - até porque os humanos, tão falíveis, certamente têm mais contas a ajustar do que gostariam – tudo indica que o arcanjo Gabriel ainda não deu o ar de sua graça. O fenômeno parece ter explicações científicas, mesmo. Tudo “culpa” das massas de ar frio que se chocam com massas de ar quente a grande altitude e empurram o ar violentamente para baixo. Ali, encontram o solo - castigado pela longa estiagem e empobrecido pela baixa cobertura vegetal - transformado numa espécie de farelo de terra e a ventania se encarregava de produzir o tsunami de pó.

O resultado disso foi o que se viu. Durante dias, falou-se no Brasil inteiro e algumas partes do mundo sobre o fenômeno. Apesar do susto, foi importante para mostrar que alguns efeitos da profunda degradação do meio ambiente perpetrada pelo ser humano nas últimas décadas já se fez sentir não apenas nas calotas polares, na camada de ozônio ou nas ilhas que afundam nos oceanos.

Um dado, extraído pela BBC Brasil a partir de análise de imagens de satélite na tentativa de explicar o haboob no interior paulista, passou despercebido, mas precisa ser reforçado. Franca mantém apenas 10,83% da cobertura vegetal nativa. Destruímos já 90% do que a natureza nos deu. É o segundo pior índice do Estado. Conseguimos a proeza, da qual devemos nos envergonhar, de ter maculado mais a nossa vegetação do que Ribeirão Preto e seus mares de cana e soja. Por lá, eles ainda têm 13,29% de vegetação nativa. É pouco, mas é 23% maior do que a nossa.

Três dias depois do haboob, na quarta-feira, 29, foi a vez da cidade surgir na CPI da Covid, onde o parvo-periquito Luciano “Véio da Havan” Hang protagonizou seu show de mentiras, dissimulações e horrores. Seu depoimento ainda estava no começo quando, ao responder a um questionamento de um senador sobre empréstimos contraídos por sua empresa junto ao BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Social), Hang disse que havia recorrido à ajuda uma única vez – exatamente, para comprar o terreno onde construiu sua loja na cidade.

“Passei em Franca, gostei do terreno e comprei por R$ 16 milhões. Terreno pertencia a empresa que quebrou e eu comprei o terreno e paguei ao BNDES. O que eu fiz foi livrar o BNDES do abacaxi”, afirmou. Pode ser verdade que o negócio tenha sido bom para o banco, mas foi ainda melhor para Hang. Pelo que se depreende de sua afirmação, o que ele fez foi assumir a dívida – e pagá-la. Se assim o fez, como tudo indica a partir de suas próprias declarações, ele teve prazos, juros e condições que são negados a 99% dos empresários brasileiros. Dinheiro a juro subsidiado e com longuíssimos anos para pagar.

Obviamente, a extrema-direita de Franca passou a defendê-lo, com argumentos que vão do inocente (“o banco tá aí para conceder empréstimo, pega quem quiser”) aos falaciosos (“ele não pegou empréstimo, ele comprou o terreno do BNDES”). É importante lembrar aos exaltados “patriotas” que quem trouxe a questão do terreno de Franca foi o próprio Hang quando respondia à pergunta de um senador sobre empréstimos do BNDES. Se ele não tivesse usado o empréstimo, não teria respondido o que respondeu. Diria apenas que jamais pegou qualquer dinheiro do banco. No caso de Franca, ele assumiu a dívida – e pagou. Mas com enorme vantagem,

Registre-se ainda que, diferente do que diz o peculiar empresário, a compra do terreno em Franca não foi a única vez em que ele usou recursos do BNDES para alavancar seus negócios. No próprio banco, há registros de 56 outras operações, que totalizaram R$ 27 milhões em dinheiro subsidiado para ajudar sua empresa a crescer. Não é ilegal e faz parte do jogo. O problema é que ele acusou muito gente de fazer aquilo que ele disse que não fez - mas fez. E, pior, quando confrontado com o fato, tentou enganar o público argumentando que usou linhas de crédito oferecidas por bancos privados e não do BNDES. É uma falácia. O BNDES não tem agências, não oferece aplicações nem fornece talão de cheques. Todas as suas operações são estruturadas, na ponta final, por um banco. Foi isso que ele fez. Pegou, sim, dinheiro do BNDES, além de linhas de financiamento do Finame (também oferecidas pelo banco) para comprar máquinas e equipamentos.

Mas o que chamou atenção e, mais uma vez, nos projetou no cenário nacional, foi sua menção direta à cidade. Hang tem quase 200 unidades de sua Havan espalhadas pelo Brasil, em múltiplos estados. Fez, como se sabe, dezenas de operações no BNDES. Mas na hora de mencionar uma loja, uma operação, o que sai da boca do periquito é justamente o terreno de Franca onde ergueria sua loja.

Superado Hang, nem deu tempo do país sentir saudades da gente. Menos de 24 horas depois, na quinta-feira, 30, foi a vez da cidade ganhar notoriedade em razão de uma terrível história desvendada pelo UOL, que depois de um ano de profunda investigação jornalística, apontou um esquema de assédio e abuso sexual cometido pelo padre Ernani Maia Reis contra monges e monjas do monastério que liderava em Monte Sião (MG).

A história é sórdida. O padre-pop-star-metido-a-guru liderava um movimento que tinha como alicerce um tal de “Caminho de Emaús”, uma espécie de rito de elevação e purificação espiritual que se estendia por nove meses. Convenceu muita gente a trilhar o tal caminho. O mosteiro chegou a reunir 52 religiosos e religiosas sob sua liderança. Ali, multiplicava-se o número de frequentadores na mesma medida em que o padre percorria cidades levando seus “ensinamentos”.

O que se descobriu a partir das denúncias do UOL é que, fechadas as portas do mosteiro, sucediam-se ali dentro, ou durante viagens que o padre fazia na companhia de religiosos, aquele tipo de prática que fez a fama das míticas Sodoma e Gomorra. Os depoimentos das vítimas são estarrecedores. Muitas abandonaram a vida religiosa e sofrem sequelas psicológicas severas. Mulheres eram maltratadas e pelo menos uma delas aponta ter sofrido agressão física.

A Igreja Católica sabia, tomou algumas providências internas, insuficientes, é óbvio, mas jamais informou às autoridades de polícia sobre o que acontecia dentro dos muros do monastério Santíssima Trindade em Monte Sião. Foi apenas na última sexta-feira, 1, um dia depois da denúncia do UOL e quase três anos após o padre Ernani dos Reis ter se afastado do mosteiro, que enfim a Igreja Católica o dispensou de suas funções clericais.

“O Papa Francisco expressamente dispensou do celibato e de todas as demais obrigações inerentes ao estado clerical e decorrentes das Sagradas Ordens o Sr. Ernani Maia dos Reis, que, há anos, integrava uma entidade em Monte Sião (MG)”, disse, em comunicado, o arcebispo de Pouso Alegre (MG), dom José Luiz Majella Delgado. Para as vítimas, estimadas em oito abusadas sexualmente e outras 11 assediadas moralmente, não houve palavras reservadas na nota.

Mas, afinal de contas, o que Franca tem mesmo a ver com o padre além do fato de centenas de católicos da cidade terem sido seduzidos por suas palavras?

É incrível, mas entre 5.568 municípios que compõem o Brasil, foi exatamente em Franca que Ernani Maia Reis resolveu fixar residência há dois anos. É aqui que ele montou, pasmem, um consultório onde atende como psicanalista. Aconselha as pessoas dentro de quatro paredes, gente que com ele divide angústias e sofrimentos e que, até a última semana, não tinham a menor noção de que seu terapeuta é acusado de abuso sexual e assédio moral.

Para piorar, sobram dúvidas sobre as credenciais de Ernani Reis que possam habilitá-lo ao ofício que exerce. Psicólogo ele não é. Psicanalista, os profissionais sérios que atendem em Franca duvidam. Seu nome não consta como filiado a nenhuma das sociedades de psicanalistas reconhecidas como sérias em Minas Gerais e São Paulo. “Para ser de fato psicanalista, a pessoa tem que passar por um processo de entrevistas, apresentar uma autobiografia, e será feita uma avaliação criteriosa para ver se tem ou não condições de cursar a Sociedade (de Psicanálise) e seus cursos. São quatro anos de cursos didáticos, com seminários teóricos e clínicos, e supervisões semanais durante dois anos, com três analistas didatas (o mais alto título dentro da sociedade de psicanalista). Além, é claro, de análises didáticas por cinco anos com quatro sessões semanais”, explica uma conceituada psicanalista que atende em Franca. Pelos prazos, é pouco provável que Ernani tenha concluído estes passos, até porque não se admite a mistura de psicanálise com religião para se fazer clínica e, até três anos atrás, ela exercia funções clericais. São universos distintos.

Ernani Maia dos Reis segue atendendo em Franca, num consultório perto da Delegacia da Mulher, avesso a explicações. Entrevistas, se recusa a conceder. Conosco, apesar de inúmeras tentativas, não falou nada além de dizer que “não falaria” sobre o caso. Tudo que se sabe é que ele nega ter cometido crimes e que, pelo menos na sua opinião, seus atos só podem ser questionados do ponto de vista moral.

Agora, é esperar para ver a que conclusão chega a Polícia Civil de Minas Gerais, que enfim abriu inquérito para apurar o caso. Seria prudente que a polícia de Franca fizesse o mesmo, sob o risco de descobrirmos num futuro quaisquer relatos de abusos feitos por pacientes. Seria importante, como primeiro passo, que as autoridades competentes dissessem claramente se ele pode, ou não, atender como psicanalista. É o mínimo que se espera.

Costumo brincar nas Lives do GCN, que faço diariamente, e no programa A Hora é Essa, que apresento todas as manhãs na Difusora AM, dizendo que qualquer hora dessas vou escrever um livro sobre os casos absurdos que testemunhei ao longo de mais de 20 anos de atividade jornalística. Tinha imaginado que um título apropriado seria 100 histórias absurdas. Mas, depois de relembrar mentalmente muitos outros, e agregar a eles os eventos da última semana, acho melhor ampliar o leque, dividir em volumes e reunir numa obra 1000 histórias absurdas. Porque algumas coisas, meus queridos leitores, só acontecem em Franca.  

Corrêa Neves Jr é jornalista e editor do portal GCN.