“Conhecerás a mentira, e a mentira vos aprisionará”
Luiz Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal
O Brasil e o mundo acompanharam, durante 56 horas, o desenrolar de um espetáculo dantesco, ora com características de tragédia grega, ora assemelhado a uma ópera bufa, protagonizado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (PSL), e com direito a centenas de milhares de figurantes saídos das hordas de fanáticos que o seguem com fervor messiânico.
O palco foi a celebração do 7 de Setembro, data que marca a independência do Brasil. Durante semanas, numa performance sem precedentes pelo ridículo, Bolsonaro praticamente abandonou por completo seu papel de chefe do Executivo para se converter em divulgador do evento.
Não houve espaço na agenda neste período para tratar dos graves problemas que impactam o Brasil, como a crise hídrica, o preço da energia elétrica, o valor do combustível, a disparada no custo dos alimentos ou os perigos da variante delta do coronavírus. Muito menos, para planejar medidas efetivas além do insuficiente auxílio-emergencial que levem alento para os milhões de desempregados. Todo o tempo do presidente foi dedicado a preparar, organizar, divulgar e convidar o maior número possível de pessoas para que comparecessem na “festa” do 7 de Setembro, que ele prometia transformar numa nova “Independência” do Brasil. Foram incontáveis conversas no cercadinho, manifestações em redes sociais, motociatas de norte a sul do Brasil. Só faltou distribuir flyer.
As promessas eram muitas. Bolsonaro dizia que a “corda estava esticada” e que não aceitaria mais o que classificava como “intromissão” do Supremo Tribunal Federal na esfera do Executivo. Repetia, à exaustão, que era o “comandante supremo” da Forças Armadas e que os militares estavam prontos para, sob seu comando, fazer valer o “artigo 142” da Constituição, que em seus delírios asseguraria aos homens e mulheres de farda a “missão” de agir como “poder moderador” da República. Forjou um inimigo que só existe na sua cabeça e na de seu séquito, o “comunismo no Brasil”, planejou batalhas imaginárias e iludiu muita gente de boa fé com soluções impossíveis para problemas que não existem.
O evento do 7 de setembro começou com Bolsonaro se encontrando com um grupo de fanáticos no “cercadinho”, uma espécie de curral que ele forjou à frente do Palácio da Alvorada. Nas primeiras horas daquela terça-feira, disse ao grupo que ali se reunia que não podia “continuar refém de uma ou duas pessoas, não interessa onde elas estejam”. Não citou nomes, mas até bolsonarista-raiz consegue deduzir que ele se referia aos ministros Alexandre de Moraes e Luiz Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal. “Esta (sic) uma ou duas pessoas ou entram nos eixos ou serão simplesmente ignoradas da vida pública. Este é o meu trabalho”, provocou.
No único ato formal previsto para a data, o hasteamento da bandeira nacional, teve a companhia de uma dúzia de ministros de Estado e dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica. Ignoraram seu convite e não participaram da cerimônia os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira; do Senado da República, Rodrigo Pacheco; e do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux. Os que foram, entraram mudos e saíram calados, o que a caserna comemorou. A partir dali, nos eventos que se seguiriam, não haveria mais oficiais graduados da ativa no entorno do presidente, o que por certo começou a frustrar suas expectativas.
O ato seguinte aconteceu ainda pela manhã, em Brasília. Apesar de uma expressiva quantidade de pessoas, estimada em 140 mil pela Polícia Militar do Distrito Federal, a multidão nem de perto chegava aos 3 milhões que os filhos de Bolsonaro julgavam possível reunir. Tinha muita gente, mas que nem minimamente representava o tamanho do endosso que ele imaginava possuir, pelo menos entre a população.
Ali, em plena Praça dos Três Poderes, desafiou explicitamente o Supremo Tribunal Federal e acenou com uma iminente ruptura institucional. "Não podemos continuar aceitando que uma pessoa específica da região dos Três Poderes continue barbarizando a nossa população. Não podemos aceitar mais prisões políticas no nosso Brasil (...) Ou o chefe desse Poder enquadra o seu ou esse Poder pode sofrer aquilo que não queremos", ameaçou. Disse, ainda, que Moraes havia perdido “as condições mínimas” de continuar no STF. "Peço a Deus coragem para decidir. Não são fáceis as decisões. Não escolham o lado do conforto. Sempre estarei ao lado do povo brasileiro. Esse retrato que estamos tendo nesse dia é de vocês. É um ultimato para todos que estão na praça dos Três Poderes, inclusive eu, presidente da República, para onde devemos ir".
A apoteose viria na avenida Paulista, em São Paulo, onde discursou à tarde para um grande público, de novo expressivo, mas outra vez abaixo do que se projetava. No lugar de outros 3 milhões esperados, 125 mil pessoas, segundo a Polícia Militar de São Paulo, estavam reunidas para ouvi-lo. E o que ouviram, partiu da boca de um sujeito visivelmente descontrolado que ocupa circunstancialmente a presidência da República, aparentemente entorpecido pelos delírios de uma síndrome persecutória perigosa.
Sem nenhum decoro, vaticinou que a partir daquele dia não mais cumpriria nenhuma decisão proferida pelo ministro Alexandre de Moraes. “Ou esse ministro se enquadra, ou ele pede para sair. Sai, Alexandre de Moraes! Deixa de ser canalha!", berrou. “Qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes, esse presidente não mais cumprirá. A paciência do nosso povo já se esgotou, ele tem tempo ainda de pedir o seu boné e ir cuidar da sua vida. Ele, para nós, não existe mais."
Animado pelos aplausos e gritos de “eu autorizo”, disse também que as eleições do ano que vem não seriam confiáveis e que não participaria de “uma farsa”, insistindo, mais uma vez, na tecla do tal “voto auditável”, como se já não o fosse. E como se o próprio Congresso Nacional já não tivesse discutido – e rejeitado – sua implantação. Repetiu ainda o mantra, do qual parece ter gostado muito, de que só vê três caminhos para seu futuro: ser preso, morto, ou vencer, não sem depois advertir, como de hábito, que “jamais serei preso”.
Enquanto dezenas de milhões de brasileiros se espantavam com suas palavras, a parcela, cada vez menor, que ainda apoia seus delírios, acreditou piamente que havia chegado a hora “de dar o golpe”. Caminhoneiros, liderados por uma figura patética que atende pela alcunha de “Zé Trovão”, convenientemente escondido no México, começaram a fazer bloqueios pelas estradas do Brasil. Num acampamento em Brasília, alguns fanáticos, repercutindo fake news compartilhadas por grupos de WhatsApp, chegaram a comemorar a decretação de “estado de sítio” e a deposição sumária dos ministros do STF, completamente alheios à realidade – ou às leis.
Para esta parcela da população, era infrutífero tentar explicar que estado de sítio não existe para implodir as instituições, que ministros não podem ser depostos por vontade do presidente ou, ainda mais fácil de observar, que tanques não estavam nas ruas. As Forças Armadas continuavam onde deveriam estar – nos quartéis. Indiferentes a todas as evidências, os radicais extremistas comemoravam o gol que ninguém fez, a vitória que não existia, publicando depoimentos emocionados, com direito a choro, nas redes sociais.
Mais cedo ou mais tarde, a realidade se impõe. E no caso de Bolsonaro e sua seita, impôs-se rapidamente. Na manhã da quarta-feira, 8, que parecia de cinzas, os mercados dispararam – para baixo. A bolsa de valores naufragou e empresas brasileiras perderam bilhões de reais em valor de mercado num par de horas. O dólar foi às alturas. Políticos dos mais distintos partidos, da esquerda à direita, começaram a discutir o início de um processo de impeachment. Advogados próximos ao presidente o alertaram que ele havia ido longe demais.
Os presidentes da Câmara e do Senado fizeram pronunciamentos, reforçando a defesa da democracia e respeito às instituições. Mas o mais duro discurso saiu da boca do presidente do STF. Coube a Fux dizer, com todas as letras, que descumprir decisão judicial, como apregoava o presidente, era cometer “crime de responsabilidade”. E, sem margem para interpretações divergentes, deixou claro que “ninguém vai fechar o Supremo Tribunal Federal”. Suas palavras tinham o respaldo de todos os ministros da Corte.
Acuado e isolado, Bolsonaro pediu ajuda a seu antecessor, Michel Temer, que o advertiu, por telefone, que a situação era gravíssima e que se ele não agisse, seu mandato seria “abreviado”, uma forma elegante de avisar que o impeachment era iminente. Na quinta-feira, 9, Bolsonaro mandou logo pela manhã um avião buscar Temer em São Paulo. Ouviu as mesmas recomendações de novo e resolveu assinar uma certa “Declaração à Nação”, que havia sido preparada por Temer.
Tamanho era seu desespero que, antes de tornar sua carta pública, abandonou quaisquer resquícios de dignidade que pudessem substituir em seu caráter e conversou, por telefone, com Alexandre de Moraes. Dirigiu-se em tom ameno ao ministro a quem xingara de “canalha” para se explicar. Disse que suas palavras foram “no calor da emoção” e que eventuais questionamentos a decisões do ministro, a partir daquele instante, seriam feitas nas vias adequadas – ou seja, o Judiciário.
No documento que divulgou minutos depois, reconheceu as qualidades de “jurista e professor” do ministro Alexandre de Moraes e reafirmou que as divergências serão resolvidas pelos tribunais. Exatamente como tem que ser e do jeito que qualquer pessoa civilizada espera que seja. Mas o estrago, na sua imagem, foi grande. Seu governo, na prática, acabou, com uma das mais humilhantes capitulações de todos os tempos na política brasileira.
Foi uma rendição incondicional. Bolsonaro havia dito, na terça-feira, que não mais cumpriria nenhuma decisão de Alexandre de Moraes; que se o presidente do STF não enquadrasse seus ministros, ele o faria; que determinava a soltura dos “presos políticos”, termo que utiliza para se referir a quem foi detido por ameaçar matar outra pessoa; que as eleições não serão confiáveis e que exigia o voto auditável.
Quarenta e oito horas depois, os ministros do Supremo continuam onde estavam. Alexandre de Moraes segue à frente do inquérito das fake news, o maior fantasma que assombra o presidente porque pode enjaular parte da sua prole. O Congresso não vai rediscutir o voto auditável e as eleições serão realizadas em 2022, via urnas eletrônicas. Roberto Jefferson, Daniel Silveira e outros assemelhados, os tais “presos políticos”, continuam atrás das grades e Zé Trovão em breve lhes fará companhia. Os caminhoneiros voltaram para suas casas.
Bolsonaro não conseguiu nada. Não fez nem um golzinho de honra. Zero. O único saldo que tem é para lá de negativo. Parte de seus mais radicais seguidores, muitos deles presentes às manifestações do 7 de Setembro, revoltaram-se contra o líder que prometeu o que não podia entregar. Multiplicam-se nas redes sociais desabafos de desiludidos, com direito a xingamentos e impropérios dirigidos àquele que, até dias antes, chamavam de “mito”.
Há três anos, um dos filhos do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, fez uma declaração polêmica que se juntava a muitas outras da família, e que permitia a qualquer um projetar o que significaria a presidência de seu pai. Faltavam poucos dias para o primeiro turno de 2018 e Bolsonaro já era apontado como favorito. “Se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo. Não é querer desmerecer o soldado e o cabo”, ironizou então Eduardo. Duvido que hoje ele pense da mesma forma. Muito menos, que ouse repetir a frase.