23 de dezembro de 2025

Dona Hermínia

Por Sônia Machiavelli | Especial para o GCN
| Tempo de leitura: 5 min

Personagens que alçam autonomia, e sobrevivem graças às características imaginadas pelo artista que as criou, costumam externar algo de universal que fala ao ser humano. Penso em Quixote, atravessando séculos e continentes, com seus sonhos loucos; em Tartufo, associado à hipocrisia nas peças de Shakespeare; em Pinóquio, de Collodi, que paga um preço físico por suas mentiras; em Emília, de Monteiro Lobato, a boneca que se põe a conversar ao tomar uma pílula falante- linda metáfora para reafirmar a linguagem como pertinência humana.

Dona Hermínia, criação de Paulo Gustavo - humorista, ator, diretor, roteirista, artista múltiplo que nos deixou na noite de terça-feira, causando comoção nacional- vai com certeza juntar-se, na nossa cultura, a tipos atemporais cuja empatia com o humano os eleva ao status dos que representam de forma realista nossos pontos fortes e fracos, nossos silêncios e estridências- sempre com humor: “Sou o tipo de pessoa que diz “obrigada”, “por favor”, “com licença” e “foda-se!”

Com seus onipresentes bobes, vestidos rodados, cintura de pilão, voz altissonante e verborragia hilária, ela passou a fazer parte da família brasileira, como a Dona Nenê de “A Grande Família” (de outro gênio, Oduvaldo Vianna), interpretada por Marieta Severo, embora essa atuasse na clave da discrição. Nascida em esquete, crescendo num monólogo, ganhando força no palco em “Minha mãe é uma peça”, Dona Hermínia chegou ao cinema. Três títulos homônimos permitiram explorar mais ainda os momentos engraçados da vida de uma mãe brasileira de classe média. O último longa foi a maior bilheteria da história do cinema nacional. Obter um sucesso desses no Brasil, sem haver passado por programa fixo na TV aberta, é algo extraordinário, conquista do gigantesco talento do ator para despertar no público o riso que liberta, a graça que torna a vida menos pesada, a gargalhada de que estamos tão carentes há mais de um ano.

Inspirando-se em sua mãe, conforme sempre fez questão de frisar, Paulo Gustavo incorporou de tal forma o espírito da desbocada Hermínia, e o enriqueceu tanto com sua própria vivência, que se falava coisas ditas por Dona Deia Lúcia no recôndito do lar, também expressava o que ele, enquanto cidadão, pensava. Sob esse aspecto poderia dizer como Flaubert sobre Madame Bovary: “Dona Hermínia sou eu.”

Essa personagem que já chegou arrasando e nos cativou de imediato, é a mãe que diz obviedades repetidas por gerações, mas com a graça de uma entonação original: “- Meu filho, você pensa que nasci ontem?”. É a cobrança descabida: “Uma mãe pode esquecer até o dinheiro que emprestou pro filho, mas vive cobrando o pote que ele levou com comida”. É a tirada ligeira: “Pareço boa mãe, mas tiro a pilha dos brinquedos barulhentos”. É a irreverência vulgar, cujo conteúdo é inquestionável: “Se vocês gostam de dormir bem, comer devagar e cagar em paz, não tenham filhos”. É a observação filtrada pelo toque contemporâneo: “Meu maior medo é ficar velha e meus filhos me colocarem num asilo sem wifi”. É a emoção grafada com breve seriedade: “Mãe e ansiedade são a mesma coisa”.

Como uma colcha de retalhos, Dona Hermínia representa facetas de incontáveis mães brasileiras extrovertidas, preocupadas, desaforadas, zelosas, leais, impulsivas, irritadas, tolerantes, amorosas, assustadas com as mudanças meteorológicas e os perigos do mundo- tudo junto e misturado.

Na terça-feira eu estava escrevendo sobre mães que na pandemia tiveram que enterrar seus filhos, o que imagino ser a maior das dores, quando as primeiras notícias da morte de Paulo Gustavo começaram a inundar o noticiário. Foi um choque, pois ele havia melhorado e até se comunicara com médicos e marido por alguns momentos no domingo. “Melhora súbita não é coisa boa”, diziam os antigos.

Infectado pela Covid, mesmo atento a todos os cuidados, antes de ser internado fez publicamente vários alertas sobre a demora na chegada das vacinas, a necessidade de manter o isolamento, a gravidade das aglomerações, o engodo dos tratamentos precoces. Nesses momentos, sua expressão adquiria um tônus de preocupação, embora procurasse levar esperança a todos o tempo todo, como o fez na sua mensagem de fim de ano, exortando à resistência da arte. E, no seu caso, do humor libertário que o vinculava a seu público de forma duradoura, porque não era o piadista que fazia rir por um momento fugaz. Seu humor questionava preconceitos como racismo, homofobia, misoginia; abria a cabeça do público que depois das gargalhadas começava a refletir sobre temas pesados do cotidiano. “Ridendo castigat mores”, diziam os romanos há mais de dois mil anos sobre esse gênero da dramaturgia, a comédia, que através do riso pode criticar os costumes de uma época. Na arte, o que permanece além da vida é porque escapou das normas escravizantes que confinam e apequenam. Por isso acho que sempre teremos a hilária Dona Hermínia.

É possível que milhões de brasileiros pensem hoje na mulher que inspirou a criação de personagem tão original. Dona Deia Lúcia é a mãe que soube desempenhar bem seu papel ao criar espaço de liberdade para o filho artista, respeitar suas opções e opiniões, cultivar um afeto tão intenso que garantiu vínculos indestrutíveis. Seu coração deve estar partido e isso nos comove, assim como nos entristece imaginar milhares de outras mães que, como ela, não receberão neste dia uma manifestação de carinho de seus filhos- infectados,internados ou mortos.

Torçamos para que a morte de Paulo Gustavo não tenha sido só mais uma entre as 415 mil até agora contadas. Que o carinho a ele dedicado leve os brasileiros que ainda se mantêm na ilusão, na ignorância, na descrença e no negacionismo, a um movimento interno que os liberte do estado de anestesia em que há meses se encontram. Porque não são apenas pessoas que adoecem e podem morrer por falta de oxigenação. A nação também está correndo esse risco.