17 de novembro de 2024

Amanhecer

Por Lúcia Brigagão | Especial para o GCN
| Tempo de leitura: 3 min

O tempo passou, acreditei-me incapaz de mudar conceitos, abrir mão de outros, adotar muitos, tão diferentes daqueles já enraizados e cristalizados.

Preferência pelo pôr-do-sol, por exemplo, manifesta na aproximação do fenômeno misterioso e palco de tantos pecados chamada noite. Observar e acompanhar o aparecimento gradual, lento e fugaz das estrelas sempre imóveis e imutáveis, mais a previsibilidade da volúvel Lua com suas configurações temporárias, além da chegada dos assustadores fantasmas e dos agitadores diabos que são usados para justificar tentações. Principalmente no Outono e no Inverno, acompanhar a impressionante intensidade da beleza das cores quentes que explodem no ocaso como saldo vivo e intenso no balanço do dia que se acaba, tudo isso faz parte de espetáculo sem comparação. E apreciar o pôr-do-sol foi sempre oportunidade de deixar aflorar certa nostalgia, certa saudade indefinida e, por vezes, até sentimento de realização e completude.

Há muito tempo fui acordada na madrugada pelo filho então pequeno que me pediu para ir à rua porque ele “queria ver o Sol nascer”. Não era hora de lusco-fusco, era de breu, mesmo. E ambos sentíamos o friozinho típico do amanhecer nos ossos, pés, costas e pernas.

Jamais consegui resistir às tentações do inusitado. Encapotei-me, encapotei-o e saímos. Andamos um pouco pela redondeza, escolhemos lugar estratégico e panorâmico que descortinava o palco da futura e desejada apresentação, sentamos sob um poste no chão, acomodei-o, ele apoiou as costas no meu peito. Abracei-o e pusemo-nos de frente para ver o espetáculo. Não falamos mais nada a partir daquele momento. Eu ouvia sua respiração, ele ouvia a minha, sincronizados. Ficamos esperando.

De repente, tênue claridade lá no fundo da imensa tela. Pequena, muito pequena, quase imperceptível. Ele suspendeu a respiração. Juntos, começamos a entender o significado do “crescendo” das peças musicais. Traço externo num foco de luz, mais outro, outro a mais, o céu lentamente se pintava de cores claras, pastel artístico que tinta algum poderá reproduzir.

Se a tarde propicia o aparecimento de cores quentes e sensuais – vermelho, laranja, amarelo, azulão, já o amanhecer traz cores frias e românticas – azul claro, rosa, amarelo claro. Estrelas e Lua ainda aparecem e durante alguns segundos e são muito mais intensas que durante a noite inteira, o que faz pensar que talvez valha mais brilhar por um instante mesmo que demore menos, que ficar exposta durante muito tempo, sem que ninguém valorize.

Ao clarear completamente, eles se desencostou, me olhou, olhos quase fechando de sono. Disse: ”Pronto, mamãe, já começou!”. E voltamos para a cama.

Passados alguns anos, subitamente entendi o significado de sua observação. Acompanhar o agitado, feérico, surpreendente, maravilhoso, colorido, turbulento e apoteótico pôr-do-sol e ver chegar a escuridão pontilhada de brilhos de variadas tonalidades, o sentimento é de lamentação: “Que pena, acabou!”. Pelo contrário, o amanhecer é prenúncio, tem sentido de abertura e, talvez, contenha muito mais mistério que a própria noite, que é quase previsível e que pode ser comparável à coda de linda sinfonia. Quase previsível.

Esta manhã acompanhei novamente à chegada do Sol. Família dormindo lá em cima, intimidade garantida pela solidão, me empacotei, sentei-me sob a copa do flamboyant que dá mostras de florescer em breve, deixei minha emoção chegar. Lembrei-me de muita coisa boa, arrependi-me de outras, senti profunda esperança de poder consertar algumas e resgatar coisas não feitas. Imensa vontade de mudar internamente, a certeza de poder conseguí-lo.

Vi as luzes dos postes que iluminaram a noite se apagarem, as estrelas desaparecerem. Vi que ainda havia um tico de Lua lá no céu. Reconheci traços da minha Scarlett O’Hara interna e senti a quase certeza de que há, pelo menos hoje, um dia inteiro para ser vivido. O Sol chegou novamente.

“Pronto! Já começou!”, eu me disse.

E parti para um novo dia.

(Minha seleção – 1999)