17 de novembro de 2024

Explicações

Por Lúcia Brigagão | Especial para o GCN
| Tempo de leitura: 4 min

Já faz tempo isso. A terceira neta perguntou a queima roupa, assim, sem mais nem menos: “quando sua mãe morreu você ficou muito triste?” Levei baita susto pois estávamos em volta da mesa da varanda, bebericando, aperitivando, ouvindo música, jogando conversa fora e as netas desenhando, rodeadas e manchadas por monte de tintas coloridas. O cenário era de alegria, leveza, fim de tarde perfeito para inventação de moda de avó e netas. Só faltava bolinho de chuva. Mas não chovia e a Nanda queria uma resposta.

E o diálogo continuou. “Fiquei, sim”, respondi. E continuei: “mas todo mundo um dia vai morrer e eu sei que vovó Cacá teve uma vida cheia, bonita, que ela foi feliz, amada, tenho certeza que ela viveu e morreu bem.” “Ela era muito velhinha, não era?” Aí ela me pegou, pensei. Nunca vi minha mãe muito velhinha. Mesmo quando foi para o hospital, com oitenta e três anos, eu ainda acreditava que ela teria muito tempo pela frente, ainda veria outros bisnetos, ainda receberia amigas para lanchar e para as “costuras” – como elas apelidavam as atividades das tardes de jogatina inocente. Mas seria muita informação para a menininha de então cinco anos e eu finalizei com um “Era. Era muito velhinha.” Depois que as netas foram embora e levaram a alegria junto com elas, fiquei sozinha pensando sobre essa questão de idade. Quem é velho? Quem é jovem? O que define a juventude, o que define a velhice?

Um amigo aguardava na fila, quando o funcionário do banco gentilmente o encaminhou para a frente de todos. “Venha comigo, por favor: o senhor tem direito a atendimento diferenciado!” Ficou meio constrangido, meio embaraçado, principalmente porque uma moça resmungou qualquer coisa quando ele passou. Bem humorado, virou-se e lhe disse: “Fica com raiva, não, moça. Essa é uma das poucas vantagens que eu tenho de ser velho. Todas as maiores e melhores prerrogativas da idade estão com você e seus coetâneos...” Dei risada, mas não concordei com ele. A idade nos traz muitas outras vantagens.

Certo dia fui ao oftalmologista para reclamar da má visão que subitamente me acometera. Não enxergava direito, coisa mais esquisita. Ele deu risadinha sarcástica, de gozação mesmo, e diagnosticou. “Não é grave e é isso aqui, ó!” e apontou minha idade na ficha. Estava com quarenta e dois anos e senti que ali começava meu declínio... A presbiopia me pegara. Ao colocar os óculos, vi de perto outro sinal, esse muito mais triste: a perda dos contornos. Meu rosto começava a despencar. Assustadíssima, subi na balança e consegui enxergar os números correspondentes ao meu peso: melhor ignorar. Impossível: sentei e chorei à beira do caminho da descida. Pensei: nunca mais aquela saia mais curta, nunca mais o decote ousado, nunca mais minhas risadas altas e espontâneas, nunca mais os atrevimentos relacionados à minha irreverência, às constantes e habituais quebra de paradigmas. Estava redondamente enganada. De algumas dessas coisas abdiquei tranquilamente. Da maioria, nem tanto. Senti que ganhei outras, muito mais significativas.

Ganhei, por exemplo, autonomia. Sinto-me segura para querer ou não querer o que quer que seja. “Ninguém me manda, sou dona do meu nariz”: com exclusão de autistas e psicopatas, quem pode dizer isso sem culpa? Não tenho filho para deixar, buscar, cuidar, alimentar, dar banho. Se faço isso tudo para os netos, faço por livre e espontâneo prazer. Disponho do meu tempo como bem entendo. Ganhei a capacidade de dizer verdadeiramente sim ou não. Cheguei naquele estágio de só conviver com quem eu gosto: quer coisa mais gostosa? Leio até a hora que quero. Escuto as músicas que escolho, sem dividir aparelhos ou negociar altura do som. Tenho projetor de filmes só pra mim. E vejo filmes quando bem entendo. Durmo até meu olho abrir sozinho. Afugento o BD (Bichinho da Desvalorização) perguntando-lhe: quantos jovens conseguirão chegar à minha idade com a mesma qualidade? Já passei pelo caminho de quem é considerado jovem. Ele conseguirá alcançar o meu?

Deixa ela crescer mais um pouco. Aí tento explicar à netinha que morrer faz parte do jogo. Que a morte é a coda de toda ópera chamada Vida. Se ela me perguntar se tenho medo, vou ser clara: claro que tenho! Pavor, melhor dizendo. Porém o terror maior é a possibilidade de ficar exposta, inconsciente, de ser alimentada artificialmente, de ser cuidada intimamente por desconhecidos. Isso sim, acredito, é sofrimento e isso me dá medo. Muito medo. Toda essa conversa e esclarecimentos, porém, ficam para - se eu tiver sorte - quando ela tiver mais idade e puder compreender tanto o motivo do medo de morrer que a maioria das pessoas tem, quanto o que pensa a avó sobre o mistério chamado morte