“O poder dos reis funda-se na razão e na loucura do povo; muito mais, porém, na loucura”
Blaise Pascal, matemático e filósofo francês
O Brasil, finalmente, está autorizado a vacinar contra a Covid-19, o que começou a ser feito, ainda que simbolicamente, com a imunização de Mônica Calazans. Mulher, negra, enfermeira da linha de frente do combate à pandemia no hospital Emílio Ribas, Mônica recebeu a primeira dose da Coronavac na tarde deste domingo, no Hospital das Clínicas, na Capital paulista, minutos depois da autorização concedida pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). A aplicação da vacina foi acompanhada pelo governador paulista João Doria (PSDB), por dezenas de autoridades do Estado e por centenas de jornalistas. Do Palácio do Planalto, nenhum sinal. Do presidente da República, nenhuma mensagem.
Além da Coronavac, parceria do Instituto Butantan com o laboratório chinês Sinovac, também está liberada a vacina da Fiocruz, parceria entre a Universidade de Oxford e o laboratório AstraZeneca. A diferença entre as duas? Há 11 milhões de doses da Coronavac disponíveis nos depósitos do Butantan, enquanto nenhuma ampola da AstraZeneca está armazenada nos laboratórios da Fiocruz, no Rio de Janeiro.
Foi exatamente o fiasco da operação de aquisição da vacina de Oxford, coordenada pelo general incompetente, “especialista” em logística e pau-mandado assumido Eduardo Pazuello, aliado ao destempero emocional e verbal do presidente Jair Bolsonaro no enfrentamento do caos sanitário em Manaus, onde brasileiros morreram às dúzias por falta de ar, que tornam irrefutáveis algumas conclusões: o governo de Jair Messias está completamente à deriva; o presidente da República precisa de tratamento psiquiátrico; seus assessores são, na média, “terrivelmente” despreparados, para ficar numa terminologia do apreço de Sua Excelência; e não há nada que ninguém possa fazer para mitigar esse estado de coisas porque o presidente, antes de tudo, é um homem mau, insensível e sem quaisquer escrúpulos.
Entendo, apesar de não concordar, com as razões que levaram milhões de brasileiros a votar em Jair Bolsonaro na disputa do segundo turno contra o petista Fernando Haddad. O nojo derivado dos seguidos escândalos de corrupção que assolaram os governos de Lula e Dilma; a incapacidade de seus líderes de assumir os erros e se desculpar, sinceramente, por algo que era vultoso, evidente e sistêmico; e a falta de opções viáveis fizeram com que muitos ficassem entre a cruz e a espada.
Boa parte dos eleitores cravaram o número de Jair Bolsonaro nas urnas simplesmente por exclusão. Não queriam ninguém do PT. Não aceitavam ninguém que tivesse o 13 associado à sua candidatura. Fosse o diabo no segundo turno, teria também derrotado Haddad.
Também consigo entender, apesar de exigir mais esforço, quem seguiu apoiando o presidente durante os últimos dois anos, apesar do seu flagrante autoritarismo, da sua evidente falta de empatia, da sua grosseria cotidiana temperada com doses maciças de preconceito e intolerância, além de sua flagrante incapacidade gerencial. Mesmo com tantos problemas, boas ações isoladas, de um ou outro ministro, mantinham, entre os eleitores que depositaram em Bolsonaro seu voto e confiança, a esperança de que ele acabaria encontrando um tom mais ameno, uma lógica mais propositiva, um caminho qualquer que, apesar dos solavancos, poderia resultar, pelo menos, num governo razoável.
O que não entendo de jeito nenhum é como, diante dos episódios das últimas três semanas, à luz das evidências e dos eventos que se tornaram irrefutáveis, alguém mantém seu apoio e confiança neste presidente da República, na sua figura pessoal ou em qualquer coisa que saia da sua boca. Além de uma pessoa ruim, ele não é confiável, não honra a palavra empenhada nem tampouco se preocupa, minimamente, com o bem comum.
Tome-se como exemplo o pandemônio de Manaus. Desde o início de dezembro os indicadores de Saúde deixavam evidente que a catástrofe era iminente. O governador do Estado, Wilson Lima, devoto ao bolsonarismo, pediu ajuda, não recebeu, mas evitou fissuras públicas. Ficou na chorumela. Diante do quadro que se agravava rapidamente, da explosão da curva de contágio e das centenas de mortes diárias, apelou para um lockdown e mandou fechar todo o comércio não essencial logo depois do Natal. Foi duramente criticado pelas hordas bolsonaristas, que invadiram as redes sociais para incentivar a desobediência civil.
Houve protestos nas ruas de Manaus, liderados por comerciantes e “conservadores”. O governador recuou. A fina flor do bolsonarismo foi ao delírio. “A pressão do povo funcionou tb em Manaus. O governador do Amazonas, @wilsonlimaAM voltou atrás em seu decreto de lockdown. Parabéns povo amazonense, vcs fizeram valer seu poder”, bradou a deputada federal Bia Kicis no dia 27 de dezembro. “E aí Wilson Lima, viu quem manda no estado? Para com essa palhaçada de lockdown senão vai ser arrancado do palácio pelas mãos do povo, literalmente. Recado dado, e que os outros ditadorezinhos de porcaria entendam a mensagem”, disse o deputado Daniel Silveira. Outros próceres do movimento, como o filho Eduardo e a parlamentar Carla Zambelli, ambos do PSL, igualmente comemoraram o recuo do governador.
Para que não haja dúvida do que pensava o próprio líder máximo, Bolsonaro comemorou, no gramado da Vila Belmiro, em Santos, no dia 28 de dezembro, o recuo das medidas restritivas que poderiam ter salvo centenas de vidas. “Vi que o povo em Manaus ignorou o decreto do governador do Amazonas”, regozijava o presidente. “Sei que a vida não tem preço. Mas não precisa ficar com esse pavor todo”. Deu no que deu.
Nem mesmo a presença do ministro da Saúde em Manaus produziu qualquer efeito prático capaz de reduzir o impacto da tragédia. Ele estava lá nos dias que antecederam a morte de vários pacientes por asfixia e não conseguiu tomar qualquer providência para evitar o pior. Assistiu a tudo, sem ação. Só depois que o desastre de Manaus ganhou o mundo e que o Brasil se viu na ridícula posição de ser socorrido pela claudicante Venezuela é que o governo começou a esboçar alguma reação. Ainda assim, tímida e pouco efetiva diante do tamanho do problema. E o que fizeram Bolsonaro e seu séquito? Pediram desculpas pelo erro de avaliação? Foram até Manaus? Solidarizaram-se com as vítimas? Nada disso. O PR, como gostam de escrever seus apoiadores, se limitou a reproduzir imagens e vídeos de aviões da FAB (Força Área Brasileira) se deslocando para Manaus – depois que muita gente morreu. Nada além.
Enquanto o inferno se descortinava sobre Manaus, Jair Bolsonaro seguia com sua guerra contra as vacinas. Especialmente, contra a Coronavac. O presidente fez o impossível para desacreditar a vacina desenvolvida pelo Butantan – inclusive, insinuando que quem a tomasse podia virar “jacaré”. Boicotou todas as tentativas de parceria que pudessem viabilizar, com correto planejamento e preparo, a distribuição em larga escala para o Brasil.
Ainda em outubro, mais precisamente no dia 21, orgulhou-se de ter determinado o cancelamento da compra de 46 milhões de doses da Coronavac, que havia sido pactuada no dia anterior entre o general Pazuello e o governador Doria. “Já mandei cancelar. O presidente sou eu, não abro mão da minha autoridade. Até porque estaria comprando uma vacina que ninguém está interessado por ela, a não ser nós”, afirmou.
Depois disso, diante do desespero dos especialistas que já viam a chegada da segunda onda enquanto o Brasil não tinha nenhuma vacina assegurada, limitou-se a dizer que a pandemia estava “no finalzinho” e que não tinha “pressa” de começar a vacinar a população. Com a sucessão de países que iniciaram a vacinação de suas populações e sem desculpa melhor, dobrou as apostas da vacina de Oxford, a única que havia comprado em grande quantidade. Mas, aparentemente, tanto Bolsonaro quanto Pazuello, além de todos os problemas já notórios, são também analfabetos funcionais capazes de assinar contratos de bilhões de reais sem ter certeza daquilo a que tem direito.
Foi assim que, na última semana, o país assistiu Bolsonaro e Pazuello, enquanto o primeiro ria da taxa de eficácia da Coronavac, anunciarem que um avião – fretado, da Azul, e não da FAB verde-oliva – estava pronto para partir rumo à Índia para buscar dois milhões de doses da vacina da Fiocruz. Mas, naquela terça, o avião não decolou. Alegaram problemas de logística. Na quarta, a aeronave não partiu de novo. Falaram em problemas técnicos. Na quinta, diante de desculpas que faziam pouco sentido, o avião decolou – e parou no Recife. A situação era incontornável, mesmo porque, a essa altura, o Ministro das Relações Exteriores da Índia já havia emitido nota oficial dizendo que não havia qualquer previsão de entrega de vacinas para o Brasil e que primeiro eles vão avançar na imunização de sua população – nada menos de 1,3 bilhões de habitantes.
Sem ter para onde correr, finalmente o governo federal assinou contrato para ficar com toda a produção do Butantan, valendo-se pra isso do Plano Nacional de Imunização, que faculta a coordenação ao governo federal. Fez sem qualquer agradecimento a São Paulo, ao governador Doria ou aos técnicos do Butantan, que diferente dos burocratas do Palácio do Planalto, conseguiram 11 milhões de doses da vacina.
Pazuello queria, inclusive, que São Paulo mandasse tudo para o governo federal para só então enviar de volta o quinhão paulista, numa operação sem precedentes na história. Tradicionalmente, como bem lembrou Dimas Covas, diretor do Butantan, São Paulo manda para o governo federal todas as vacinas, menos aquelas que são destinadas ao próprio estado, que já ficam por aqui. É o lógico para qualquer um, menos para o gênio da logística Eduardo Pazuello.
Neste domingo, enquanto o Brasil comemorava a vacinação da primeira brasileira, as sempre férteis redes do presidente Bolsonaro se mantinham em silêncio. O pau-mandado Pazuello, quando abriu a boca, foi para reclamar da “jogada de marketing” de Doria, horas antes de convocar os governadores de Estado para uma reunião que marca o início da campanha nacional de imunização, na próxima quarta, num evento que tem cara, jeito e cheiro de... “jogada de marketing”.
O Brasil e o mundo, estupefatos, assistem o delírio do presidente Jair Bolsonaro. Seus defensores, cada vez em menor número, seguem com o mantra de que, pelo menos, ele é honesto. Tenho minhas dúvidas, a julgar pelas muitas manobras que faz para blindar sua família e amigos e investigações potencialmente danosas. Mas, ainda que seja, o que repito, não é certo, não vejo qualquer avanço. Trocamos ladrões por assassinos; gente que desvia dinheiro dos cofres públicos, o que é terrível, por outros que condenam à morte milhares de brasileiros, o que é absolutamente execrável – e imperdoável. Bolsonaro é um genocida. E nenhum genocida, ainda que seja honesto, pode ser um bom governante. Nem aqui, nem em nenhum lugar.