Vovô Nicola, era o ícone da ranzinzice. Se de vovó Lila guardo a lembrança da doçura, da paciência, da delicadeza e da fragilidade, a imagem dele está associada a resmungos e mau humor. Poucas vezes, que me lembre, ele tirou os olhos dos arames, torneadores e madeiras que usava na construção de gaiolas para cumprimentar aquele bando de meninos que iam religiosamente visitá-los aos domingos, acompanhados pelo pai amoroso e barulhento. Depois que cumpríamos o protocolo – chegar, pedir a bênção e vazar para o quintal, esperar o almoço sob a parreira, algumas vezes nos foi permitido voltar para a sala e acompanhar o processo delicado e vagaroso da formatação das gaiolas que ele delicadamente construía. Sem prosa, no entanto. De vez em quando ele pigarreava, levantava os olhos azuis para a gente, não posso precisar se a expressão era riso ou braveza. Todavia, a certeza: a gente se espremia de medo dele na parede. Baixinho, magro, chinelos, cigarro de palha pendurado no canto da boca, não era de muita conversa, não. Homem forte e corajoso, no entanto. Muitas histórias de superação relacionadas a ele entre as quais, aquela do intenso e prolongado sofrimento de duas dos nove filhos que nasceram perfeitas, contraíram poliomielite na infância, ficaram acamadas durante anos, sofreram dores e lentas deformações até suas mortes.
Vovô Nicola era o mais velho dos irmãos, filhos de Rosa LaGreca e Vittantonio Maniglia. E foi dele a responsabilidade de cuidar da família, depois da morte trágica do patriarca. Na foto do casamento de Nicola e Calogera (Lila) em 25 de agosto de 1917 ninguém está sorrindo. Bisnonna Rosa Mônica parece assustada, imagino que adivinhava as dificuldades que enfrentaria para criar os filhos. Alguns dos irmãos pequenos de vovô Nicola, Francisco, Benedito e Maria sorriem, talvez porque, com tão pouca idade, não entendessem de futuro, responsabilidade, coragem, altruísmo, necessidades e sacrifícios que seriam exigidos para sobrevivência, formação, encaminhamento e manutenção de todos. Sinto muito orgulho deles.
Da origem de vovó Lila, sei pouco. Por mais que perguntasse, as respostas vinham ligeiramente lacônicas. Era bonita, miúda, corpo frágil e sempre que os filhos homens partiam para as brigas - de onde saíam pó, fagulhas e lascas - ela desmaiava - excelente recurso para acabar com as contendas e discórdias: as atenções se voltavam para ela, e os filhos se acalmavam. Vovó era Sansoni, sobrenome de solteira. Teve dois irmãos. Maria, que viria a se casar com Pedro Spessotto e um irmão que se mudou jovem do Brasil, que teria ido para a Venezuela e de quem nunca mais se teve notícia. Vovó Lila era vizinha de Roberto e Filinha. Sogra e nora foram companheiras e amigas enquanto viveram. Vovó Lila fazia os almoços dos domingos para a família inteira, cujo preparo transpassava a semana. Preparava molhos e massa - minha predileta era o ravióli – processo registrado por escrito pelas mãos de tia Filinha, cujo original escondia no cofre. Talvez tenha sido minha alegria de reencontrá-lo; quem sabe a saudade daquele passado. A verdade é que reproduzi a receita e fiquei orgulhosa do resultado. Outro cheiro dos domingos na casa deles, era o da sopa da tarde de domingo, cujo preparo começava também muito antes. E música. Muita música...
Banzo de final e recomeço de ano. Saudades. Cheiros, humores, sons, histórias, parreira no quintal. Camiseta sem mangas, lembranças, risos e choros, chinelos, passarinhos, fotografias. Era uma casa italiana. Davvero, una casa italiana...