17 de novembro de 2024

Bolerando

Por Lúcia Brigagão | Especial para o GCN
| Tempo de leitura: 4 min

Saudades do bolero. De ouvir bolero, de cantar bolero. Sobretudo de dançar bolero. Bolero... lembra como era? Ele vinha, nos tirava para dançar, pegava na cintura da gente, mão direita circundando-nos completamente a cintura. Peito com peito. Os sutiãs de enchimento, idênticos a ninhos de passarinho, corriam o risco de ficar achatados nos bicos. Dois pra lá, dois pra cá, a cabeça rodando com os Cuba-libre – rum com coca-cola, gin com tônica, whisky com guaraná, quem sabe com alguns Hi-fi - vodka com Crush. Mão na mão, a gente ali, respirando com dificuldade muito mais por causa da quentura vinda do lado de baixo do Equador, que pelo arrocho dos braços que nos rodeavam. Medo de vexame, eles se protegiam com cuecas de apertar o baixo ventre. De vez em quando tudo se encostava, no breque do ritmo – do rosto à ponta dos pés. Eram reduzidas essas oportunidades e experiências bolerescas nas festas domiciliares: luz excessiva, muito mais rock´n´roll que Lucho Gatica ou Gregório Barrios. O clima pintava nos clubes, nas brincadeiras dançantes, nas boites, em salões – digamos – mais privês.... De qualquer forma, quem não dançou um bolero no capricho não sabe o que é sedução; não imagina o que seja excitação; não tem a menor idéia do significado de lúbrico, afrodisíaco, lânguido, excitante, voluptuoso, lascivo ou sensual...

Saudades de bolero.

Dançar bolero e conversar simultaneamente, jamais: atividades excludentes. Fundamental entregar-se totalmente àquele exercício semelhante a um prenúncio de sexo, dos bons. Os títulos - Tu me acostumbraste, Perfídia, Quizás, quizás, Contigo en la distancia, Soy el prohibido, Sin ti, Veinte años - sugeriam amor frustrado, sofrido, assumido, doído, sem solução. Drama e tragédia. La Barca é a música mais cantada no mundo todo, em todos os tempos. Fortemente presente, em todas as letras, tanto o substrato de todos os boleros - os homens amam, as mulheres são (apenas) amadas; mais a perspectiva ou ameaça da possibilidade de perda do ser amado ou a amargura subentendida na lembrança do que passou.

Saudades de sentir bolero...

Nosso multifacetado entorno ainda revela a presença do bolero em singulares manifestações. São verbos-boleros: arfar, fremir, estremecer, palpitar, bramir,

clamar, suar, gotejar, ansiar, angustiar, anelar, ofegar, padecer, esquecer. São coisas-bolero: unhas pintadas combinando com o batom vermelho, perfume com cheiro de talco, pó de arroz Promessa, maiô inteiro – com sainha na frente, brilhantina, luvas compridas, gargantilha de pérolas de três voltas, camisola de rendas, casaco de peles curto, vestido tomara-que-caia, cabelo com ondas, velas com perfume e óleos aromáticos. Fazem parte da decoração bolero: tapetes luxuriantes, fogo na lareira, discos de vinil, toca-disco de agulha, som hi-fi. São atitudes-bolero: peito cheio de esperança; impulso de passear na madrugada; ficar sob a luz do poste na rua; sonhar olhando a Lua Cheia. Suspiros profundos. Echarpes de seda. Suflê é comida-bolero. Pimenta vermelha cheirosa é condimento-bolero. A expressão “nunca mais” é absolutamente bolero. Disco de vinil, vultos enfumaçados, cigarro, abajur lilás, luz difusa são parte do cenário-bolero. Chuvinha fina, também. Reflexo de luz na água: boleríssimo. Sofá de veludo... Homem de chapéu? De camisa preta? De bigode? Bolero puro! O Pecado Original, além de ter sido sugerido e motivado, com certeza foi cometido aos acordes de um bolerão.

Saudades de viver bolero...

Para captar o clima dramático de bolero é preciso tempo e imaginação. Tenha-se uma noite enluarada, ponha-se na vitrola o disco de vinil de Lucho Gatica. Imagine-se numa praia, coqueiros balançando freneticamente (adjetivo-bolero) como antes do temporal. Vista-se com summer (calças pretas, paletó branco - roupa-bolero). Acenda um cigarro – não precisa fumar, só a fumacinha subindo já vale. Fique em pé. Uma mão no bolso a outra segurando o copo de whisky (com gelo e guaraná). Olhe longe, além da lua. E deixe as frases invadirem seu coração: “Contigo en la distancia, amada mia, estoy”; “Solamente una vez amé en la vida, solamente una vez y nada más”, “Aunque sea pecado, te quiero, te quiero lo mismo”; “La puerta se cerró detrás de ti y nunca más volviste a regresar”; “Por eso me pregunto, al ver que me olvidaste, porque no me enseñaste como se vive sin ti”. Bolero é coisa de macho. Mulher, no bolero é coadjuvante.

Saudades de bolerar!

 

(Texto de 2009. Uma curiosidade: naquele ano, logo que publicado, recebi E-mail – não existia Whatsapp - assinado por casal de outra cidade, ambos fãs do ritmo. Devidamente copiado, foi guardado com carinho. Espero que ainda dancem bolero. Bolerando fará parte de antologia que está sendo preparada.)