24 de dezembro de 2024
GAZETILHA

Dinheiro sujo

Por Corrêa Neves Jr. | Diretor do GCN
| Tempo de leitura: 8 min

“O ridículo desonra mais do que a desonra”

La Rochefoucauld, escritor francês

 

O Brasil, não é de hoje, tem se mostrado terreno fértil para a corrupção. É certo que o desvio de caráter nem de longe é exclusividade nossa, mas não é exagero nenhum dizer que em poucos lugares do mundo houve registro de tantos esquemas de pilhagem de recursos públicos como por aqui – e não é de hoje. A lista é imensa, tanto de malfeitos quanto de malfeitores, pertencentes a diversos e distintos partidos políticos, de esquerda ou de direita, em conluio com empresários dos mais variados naipes, sempre com um único objetivo: roubar, sem dó, o maior volume possível de dinheiro dos cofres públicos. Passa o tempo, mudam os personagens, trocam-se as ideologias, mas a maldita corrupção persiste. Em alguns momentos, com toques de tragicomédia que fazem que a roubalheira tenha contornos ridículos.

Quem tem mais de 40 anos certamente se lembra do escândalo dos Anões do Orçamento, no início dos anos 90, simbolizado pelo então deputado federal João Alves (PPR, hoje Progressistas), da Bahia. O sujeito, junto com outros comparsas do Congresso Nacional, cobrava propina de prefeitos para incluir emendas – e depois liberar o dinheiro – no orçamento da União. Cobravam comissão de empreiteiras – sempre elas – para liberar recursos para obras vultosas engasgadas nos gargalos da burocracia estatal. Usavam também uma rede de ONGs controladas por laranjas para receber dinheiro que deveria ser usado para programas assistenciais, mas que acabavam no bolso dos líderes do esquema.

Quando o escândalo explodiu e o esquema foi descoberto, o Brasil era presidido por Itamar Franco. Numa tentativa de justificar o injustificado, ou seja, de explicar como tinha sido possível a um deputado amealhar um patrimônio bilionário, João Alves surgiu com uma explicação infame. "Deus me ajudou e eu ganhei muito dinheiro", repetia. O deputado se referia às muitas vezes em que “ganhou” na loteria. Obviamente, a realidade nada tinha de sorte.

O que o deputado fazia era comprar todos os bilhetes possíveis nos sorteios em que havia prêmios acumulados. Ele gastava mais com os bilhetes do que ganhava com o prêmio, mas conseguia assim “lavar” o dinheiro, tornando legítimo o recurso roubado. Era tão cara de pau que chegou a repetir a operação mais de 200 vezes. É isso mesmo que você leu: João Alves “ganhou” mais de 200 vezes na loteria. Pouco importava que perdesse um tanto de dinheiro a cada operação, já que era tudo roubado. João Alves renunciou ao mandato. Morreu, em 2004, aos 85 anos.

Em 2005, já com Lula na presidência, um certo José Adalberto Vieira da Silva, assessor do então deputado federal José Guimarães, irmão de um dos homens fortes do PT, José Genoíno, foi flagrado no aeroporto de Congonhas com R$ 209 mil numa maleta de mão – e US$ 100 mil na cueca. Guimarães, hábil político e mais hábil ainda ficcionista, deu um jeito de convencer um certo Kennedy Moura, assessor da presidência do Banco do Brasil indicado por ele para a função, a assumir ser o “dono” do dinheiro na cueca, cuja verdadeira origem seria propina na intermediação de contratos com o governo federal. Oito deputados e assessores foram denunciados por envolvimento no esquema de corrupção. Sabe-se lá como, o deputado José Guimarães foi absolvido em 2012 – e continua, hoje, na Câmara Federal, cumprindo seu quarto mandato consecutivo como representante do Ceará.

Viria então 2017. O Brasil era governado por Michel Temer, que tinha assumido a presidência da República um ano antes, no lugar da cassada Dilma Rousseff. Naquele setembro, a Polícia Federal deflagrou a operação Tesouro Perdido, um desdobramento da operação Catilinárias, dedicada e desmantelar mais um esquema de corrupção. Num apartamento do deputado federal baiano Geddel Vieira Lima, em Salvador, a PF apreendeu inacreditáveis R$ 51 milhões – em espécie. Foi a maior apreensão de dinheiro vivo da história do país. Foi preciso usar sete máquinas de contar cédulas, durante quatorze horas seguidas, para chegar à soma total.

Na sua defesa, Geddel afirmou que a quantia era “herança” do pai. Segundo a PF, o dinheiro na verdade era fruto de um esquema de propinas para a viabilizar a liberação de créditos do Fundo de Investimento do FGTS para empresas. Só neste esquema, ele teria embolsado R$ 20 milhões. O resto viria de outras participações criminosas na sua longa e pouco edificante “carreira” política, marcada por incontáveis envolvimentos em esquemas de corrupção – a primeira, nos Anões do Orçamento, na qual ele foi envolvido ao lado de João Alves. Geddel foi preso, foi solto, preso de novo, solto outra vez. Acabou condenado a 14 anos de prisão, mas responde ainda a outros tantos processos.

Tenho um amigo que costuma dizer que o mundo não gira, ele capota. É um jeito de traduzir, de forma simples e direta, os efeitos da tal ação e reação, ou lei do retorno, que a gente não sabe explicar, mas que sente sempre presente. Às vezes, de forma quase instantânea.

Poucos dias depois do presidente Jair Bolsonaro afirmar, num de seus incontáveis pronunciamentos em redes sociais, que o Brasil não precisa mais da Operação Lava Jato porque ele acabou com a corrupção, o vice-líder do governo no Senado, Chico Rodrigues (DEM), foi flagrado pela Polícia Federal com R$ 33 mil – na bunda. Literalmente. O dinheiro estava, segundo o delegado responsável pela operação, “entre as nádegas” do senador.

Quando o dinheiro apreendido era do assessor do deputado federal petista José Guimarães, Bolsonaro fez cinco violentos – e pertinentes – discursos na tribuna da Câmara sobre o assunto. Agora que o dinheiro foi encontrado na bunda de um representante do seu governo, Bolsonaro foi muito menos enfático. Limitou-se apenas a dizer que Chico Rodrigues não era do governo. A afirmação é falsa. Ele não é ministro – e José Guimarães também não era – mas isso não significa dizer que ele não seja do governo. Era, tanto na essência quanto na forma. O título de vice-líder do governo não é ocupado por alguém da oposição, nem se chega a tal posto sem o aval do presidente. Mais importante ainda, foi ao lado de Chico Rodrigues que Bolsonaro havia declarado, semanas antes, sua fase “paz e amor” com o Congresso, dizendo que estava em “união estável” com o Centrão, do qual a figura com o dinheiro na bunda é um dos mais proeminentes representantes.

Obviamente, nada indica que o dinheiro sujo tenha qualquer relação direta com o presidente Jair Bolsonaro. Mas deveria servir, no mínimo, de alerta para ele: ninguém em sã consciência pode atestar o “fim da corrupção”. Pode, sim, apoiar o combate a ela, o que não é pouca coisa. No mais, é mera falácia.

Sobre Chico Rodrigues, cabem ainda algumas observações. O Senado da República oferece um dos mais importantes cargos que existem. Quem é eleito tem salário (ou subsídios, se preferirem o termo mais preciso) de R$ 33 mil mensais. Pode nomear 11 funcionários diretos para o gabinete, conta com outros tantos concursados às suas ordens, e tem verbas complementares que ajudam em tudo. Tem auxílio moradia, carro à disposição, dinheiro para desenvolver o mandato, emendas parlamentares, plano de saúde vitalício e ilimitado para si e sua família, passagens aéreas, e por aí vai...

Diante de tudo isso, impossível não ficar absolutamente estupefato com a postura do senador diante da polícia que cumpria mandato de busca e apreensão. Por que esconder R$ 33 mil na bunda? Não é ilegal ter dinheiro em espécie em casa e o montante nem é expressivo, considerado sua renda. Seria plenamente plausível o senador justificar o valor apontando a necessidade de ter dinheiro vivo, por exemplo, para as inúmeras viagens que faz a seu Estado. Isso poderia, inclusive, explicar o restante que foi aprendido na sua residência, quantia incontáveis vezes inferior ao que havia no apartamento de Geddel e significativamente menor do que o total que jazia na cueca do assessor de José Guimarães.

A única conclusão possível é que o dinheiro de Chico Rodrigues é tão sujo, mas tão sujo, que estava completamente imundo e fedido muito antes de repousar por entre suas nádegas. Segundo as investigações preliminares, trata-se de propina na liberação de recursos para o combate à pandemia do coronavírus. Entrou onde foi encontrado, tão sujo quanto saiu dali.

Agora, é torcer pela rápida apuração da Polícia Federal e por eventuais desdobramentos na Justiça. Esperar consciência e decência do senador não é uma boa aposta, por duas razões.

Primeiro, porque apesar de vários aliados sustentarem que sua carreira política está acabada, o senador não parece propenso a renunciar. Ele se afastou do cargo de vice-líder do governo e também do Conselho de Ética - sim, ele era membro - do Senado. Está também afastado de suas funções no parlamento por decisão do ministro do Supremo, Luiz Roberto Barroso, mas ainda tenta salvar seu mandato. Segundo, porque no país da piada pronta, se Chico Rodrigues for cassado, quem assume é o suplente, Pedro Arthur. O suplente do senador, Pedro Arthur, é ninguém mais, ninguém menos, do que filho de Chico Rodrigues. Durma-se com um barulho – e um fedor – desses. Se conseguir, é claro.