De algumas coisas vistas pela primeira vez podemos não nos esquecer. Dependerá do tamanho do impacto ficarem ou não acomodadas num escaninho da memória até que algo venha resgatá-las. O novo às vezes se impõe na mente como suco de caju no tecido branco. Quase impossível remover a marca.
Dentro dessa categoria de acontecimentos que nos habitam e não mudam de casa, tenho o velório como exemplo. O primeiro que vi nos meus parcos seis anos foi o de um velho sapateiro que tinha oficina e moradia perto de minha casa. Ele me destinava um sorriso bondoso quando eu passava pela sua calçada carregando o pão matutino da venda do Felão. Numa manhã solar, vi movimento inusitado e entrei na casa do Seu Manuel. No meio da sala repleta de gente, sobre a mesa, num caixão roxo, cercado por quatro grandes velas, estava o meu amigo. De terno, coberto por véu negro que afastava moscas. Entre as mãos inchadas, um ramo de cravos.
Mantinham-se próximas ao caixão a mulher e a filha, que sufocavam soluços nos seus lenços branquinhos. Tolhida pela surpresa da morte súbita, chegava gente com expressão triste estampada no rosto. Aos poucos alguns se acercavam das duas mulheres, diziam coisas como “meus pêsames” – expressão que eu não conhecia. Alguém rezava alto e um coro respondia depois da palavra “mistério”. Voltei para casa achando que o sol tinha perdido muito do seu brilho. Custei a assimilar a realidade. Então morrer era daquele jeito! Misturava sensações, sem que conseguisse transferi-las para as palavras.
O tempo voou e vieram os anos 70, quando ninguém mais velava seus mortos em domicílio. Avanço de civilidade, a cidade já tinha espaços para velórios. Neles vivi o de familiares e amigos. Os abraços que diziam mais que centenas de palavras; os olhares que me conferiam força; as pessoas que com sua simples proximidade emanavam empatia – tudo isso me foi precioso. Ali estavam comigo, que sofria, seres humanos cuja presença significava velar um corpo sem vida e ao mesmo tempo lembrar a vida que se exilara daquele corpo. Tristeza e dignidade, as palavras agora nomeavam os sentimentos.
Neste 2020, que será lembrado como o ano da Covid-19, assim como o de 1918 foi o da gripe espanhola e o de 1347 o da peste negra, a necessária proibição dos velórios criou situação estranha: vemos nossos queridos vivos num dia e depois que a indesejada das gentes surge com sua foice no hospital, não mais. Eles parecem evaporar-se, sem nenhuma cerimônia. Tudo fica ainda mais cinzento, porque os rituais em nossa cultura continuam importantes nessa despedida. Mesmo acreditando que nada morre porque a vida é eterna, penso que a falta das velas, das flores, das boas palavras, das preces e da presença solidária num momento de adeus aproxima o derradeiro capítulo de uma biografia a uma frase sem ponto final. Não somos balões que explodem no ar; somos velas ao vento até o fim.
Acho que por conta dessa minha particular percepção senti a falta de um lugar onde pudéssemos nos reunir para velar Martha Maria Neves Sericov, mulher que guerreou muito e merecia uma salva de palmas quando no dia 30 de agosto seu corpo foi cremado em Vila Alpina. Mantenho a sensação de que ela partiu sem que eu pudesse lhe dizer “tchau, Martha, descanse em paz, ao som dos boleros e das canções russas que seu amado João cantava”.