“O ruim por si se destrói!” Com estas palavras minha mãe tinha esperança de me fazer no futuro pessoa boa, paciente, dócil e meiga. Ela acreditava que futuramente eu tomaria tenência e passaria a conter meu gênio – mistura explosiva de sangue calabarês mais siciliano mais napolitano. Tadinha dela. Por ruim ela dava significado às atitudes, particularmente minhas, de não perdoar facilmente; de explodir fácil; de não me calar ou reagir ante ofensas sutis ou escancaradas dirigidas a mim pessoalmente ou aos que quero bem. Tadinha dela. Lutou em vão contra meus demônios particulares que ora me põem – ainda - em frias memoráveis, ora me estigmatizam, ora me ofuscam e por vezes até ofendo quem não mereceria. Sou tida e havida como quem paga um boi para não entrar em briga mas, se provocada, bota a boiada inteira para não sair dela. Não vejo qualquer vantagem em ser assim, mas como a Gabriela, nasci, cresci, morrerei assim, tomara que não de raiva ou autocombustão.
São estopins de minhas explosões coisas do cotidiano como ver alguém furar fila ignorando quem está nela há mais tempo. Ver o ocupante do carro da frente do meu jogar casca de mexerica, latinha vazia de refrigerante, saquinho vazio de pipoca ou restos de comida pela janela.Alguém desembrulhar algo e jogar o papel do invólucro no chão – grosseria ou falta de educação? Ouvir as palavras “Você sabe com quem está falando?” dirigidas a mim ou a quem está por perto, por algum figurão. Passar por cima do meu atroz sentimento de posse – ainda vou melhorar disso - emprestar livro, disco ou filme e a pessoa emprestá-los para outra, iniciando assim cadeia sem fim: o outro empresta para o outro, que empresta para o outro e eles somem na imensidão. Alguém enfiar a mão no meu prato, fazer cara de paisagem e dizer: “dá uma batatinha?” Ressalva: se for neto, pode. Casais marcarem encontro clandestinos na frente do meu terreno, enquanto há tantos motéis por aí. O vizinho jogar seu lixo na minha calçada. Quem não tem sequer uma árvore plantada na frente de sua casa – árvores sujam calçadas! – usarem as minhas como sombra de estacionamento. Certa vez, ao chegar em casa, encontrei dois sujeitos que se identificaram como agrônomos, fazendo sulcos profundos nos galhos de pequena árvore de estimação, rara e linda, plantada ao lado de casa. Justificaram o crime alegando que seria egoísmo meu não querer dividir
aquela beleza toda com os outros, porisso tentavam reproduzir o espécimen. Detalhe: justificaram e deram no pé, não sem antes tentar me engabelar, porque enquanto um operava a árvore e corria para acabar logo, o outro me chavecava. Saíram dali cantando pneus. Não chegaram ao meio do quarteirão, arranquei tudo. A árvore se recuperou e eles nunca mais apareceram.
Ainda na faculdade, fumava e tinha parceiros que nunca me retribuiram um cigarro que fosse. Especialmente aquela garota, que interrompia a aula em andamento; educada pedia licença ao professor, me chamava à porta e, assim que eu chegava mais perto, encolhia os ombros, pendia a cabeça para o lado como se tivesse envergonhada, sorria à meia boca, dizia em voz baixinha e delicada: “Me dá um cigarrinho?” Um, dois, já estava no quinto ou sexto mês de fornecimento, eu quase explodindo com aquela filação. Um dia, passei pela tabacaria, pedi o cigarro mais vagabundo e barato, daqueles arrebenta-pulmão especiais para peito de estivador. Fui para as aulas, leve como não me sentia há muito. As aulas começaram, lá pela terceira ou quarta aula, pouco antes do intervalo, eis que ela surge. Loirinha, delicada, falando baixinho. “Professor, dá licença?” e se dirigindo a mim, pediu que me chegasse a ela. “Dá um cigarrinho?” pediu. “Claro!” respondi e lhe entreguei um maço de Camel. Abriu os olhos, assustada, pálida e espantada, perguntou: “Você está fumando isso?” e aí eu me vinguei. “Não, querida” Esse é o de dar para filões. Continuo fumando Charm!”. O câncer que ela me desejou naquela hora em consequência do cigarrro chegou bem mais tarde. Mas ela nunca mais me pediu unzinho que fosse. Pergunto: foi outra ruindade minha?