Quase quarenta anos, ainda moramos na casa construída com cuidado, desvelo e carinho. Cada canto foi pensado, analisado, calculado e deduzido. Exagero de previsão, antes do levantamento dos muros, antecedi a disposição dos móveis nos quartos, nas salas, usando pequenos módulos de papelão que a revista Casa e Jardim certa vez disponibilizou para os leitores. Edição que, aliás, descobri recentemente, ainda tenho. Afirmo, por isso, que a casa é minha... Muito pouco mudou durante esse tempo e cada centímetro da casa foi amado tanto por nós, como pelo arquiteto e pelo construtor, que sugeriam detalhes para manter a construção o mais fiel possível ao sonho que tínhamos. Natural que cada familiar escolhesse seu canto predileto. Não eu: sou a rainha da cozinha, das salas, dos quartos, do “porão” - a parte inferior que não prevista, que acabou por acontecer por causa de erro na medida topográfica do terreno. A casa nos é tão surpreendente que oferece ainda, mesmo depois de trinta e sete anos de seu início, possibilidades de uso, reuso e invencionice, embora sem reformas estruturais, que ficam restritas ao interno de cada um. Recentemente decidi fazer faxina no escritório, que chamo de meu. Estou rodeada de lembranças trazidas por papéis, fotografias, recortes de jornal, jornais, cadernos, bilhetes, cartas, álbuns, Cds, envelopes, planos e roteiros de viagem, guias de turismo e livros, livros e livros, meus e deles todos aqui de casa. O volume é grande. E a emoção vinda de cada pedaço de papel, maior, ainda.
Enquanto organizo, lembrei-me que houve época em que a decoração do escritório/biblioteca das casas muitas vezes se fazia por metro: antiga piada conta que os proprietários que tinham dinheiro e pouca cultura compravam livros por metro, para compor as prateleiras... Não foi nosso caso, mas tenho a Barsa, usada no tempo em que o computador só existia na Nasa. Tenho a coleção de Prêmios Nobel de Literatura, desde o primeiro, até o ano em que a editora interrompeu a edição, embora os prêmios continuem sendo outorgados. Tenho as Seleções do Reader’s Digest desde sua primeira edição, em Portugal, em 1942, até a de dezembro de 1973. Daria para compor cenário intelectual só com esses, não contasse com muitos, muitos outros... O processo de desapego e auto convencimento está sendo longo e lento e difícil. Decidi que está na hora de abrir mão deles, porque não faz mais sentido guardar tanta coisa. Na era em que o computador viabiliza aulas à distância, faz cirurgias, cálculos complicadíssimos, nessa época na qual crianças que nem andam direito são capazes de conectar o aparelho e procurar por elas mesmas lazer, distração e informação, o que fazer com tantos e tão diferentes livros?
O processo de seleção de descarte é lento, doloroso e dói na alma. Livros lidos na infância e adolescência: basta pegar o volume, que o enredo brota dele e é imediatamente reavivado na memória. Dá-se o mesmo com os dos filhos. Uns, eram lidos para eles, quando se acomodavam para dormir; outros, eram presentes. Acredita? Livros já foram considerados excelentes e cobiçados presentes. Há livros com dedicatórias escritas à mão pelos avós, tios, professores, colegas de escola, vizinhos, amigos. Como descartá-los sem despedida decente, sem o consentimento tácito de quem os deu e o de quem os possuiu? Encontro, invariavelmente, dentro dos meus livros bilhetes, cartas, fotos, comentários que me são entregues no percurso da leitura. Têm dupla função. Enquanto leio, sinalizam-me as páginas. No final, tornam-se registros do período que dediquei àquela leitura específica. Abro qualquer livro e dele caem esses pedaços de vida. Estou envolvida na tarefa de pegar um por um, abrir, sacudir para ver o que cai, triar, ler cada componente de seu conteúdo, decidir se me despeço ou o mantenho. Está difícil. São muitas histórias, memórias, lembranças. O trabalho não rende, meu coração fica constantemente apertado. Despedidas, de fato, não são emocionalmente nada fáceis.