"Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos”
Euclides da Cunha, escritor brasileiro
Há um filme de ficção-científica relativamente recente, A Chegada, de 2016, que apresenta uma teoria linguística desenvolvida nos anos 20 por dois pesquisadores que se mostra incrivelmente atual, especialmente quando considerada a nossa realidade política. Há alguns meses, comentei neste mesmo espaço sobre a teoria, conhecida como Hipótese Sapir-Whorf. Sem entrar em detalhes técnicos demais, pode-se resumir a teoria com a ideia de que a linguagem define o comportamento de uma sociedade, e não o contrário, como habitualmente se assume.
Ou seja, segundo Sapir-Whorf - que nem de longe é majoritariamente aceita, registre-se - nos expressamos de determinada forma não porque pensamos de um jeito específico, mas nos comportamos de determinada maneira porque falamos – ou escrevemos – de um certo modo. No filme, isso é mostrado de forma magistral nos esforços de uma linguista que luta para estabelecer contato com alienígenas que chegaram à Terra em 12 naves diferentes e utilizam uma linguagem complexa, sem equivalência com qualquer idioma conhecido. Se ainda não viu, assista. Vale muito a pena.
De volta ao mundo da pandemia e ao Brasil do desequilíbrio e do descompasso, difícil para quem assistiu o filme não lembrar da teoria de Sapir-Whorf diante do discurso presidencial e dos seguidores de Jair Bolsonaro, tanto no caso do enfrentamento ao coronavírus quanto em outros episódios de um governo que ainda não completou dois anos, mas que já coleciona conflitos, confrontos – e gafes - que, certamente, entrarão para a história.
É curioso como um bolsonarista radical do Acre, outro de Santa Catarina ou um terceiro aqui de Franca recorram aos mesmos termos, aplicados a circunstâncias similares, ainda que com personagens distintos, para construir seu raciocínio. Mais curioso ainda é perceber que, muitas vezes, tais “pensamentos” são moldados por palavras que, no português, não significam originalmente aquilo que eles pretendem dizer. Ou sejam, “criam” novos significados – e contextos – para o mesmo idioma que todos nós falamos.
Mais do que nunca, considerado que o presidente não chegou ao meio do seu mandato e tem ainda dois anos e meio pela frente, um glossário para tentar traduzir o discurso bolsonaristas é fundamental. O desafio é imenso. Mas pode ser, também, divertido. Vamos a ele:
#______lixo: uso da hashtag + nome próprio + sufixo “lixo” é provavelmente o jargão mais utilizado pelas hordas bolsonaristas. Versátil, se aplica a qualquer coisa, mas é mais usado para classificar veículos de comunicação que publiquem notícias que desagradam o presidente. Ex: #Globolixo, #GCNlixo, #Folhalixo, #Midialixo. Nota do Tradutor: o bolsonarês é dialeto extremamente dinâmico. Em 24 horas, um veículo considerado “sério” pode começar a receber a #lixo se tiver publicado uma única notícia que desagrade o presidente. Foi o caso da CNN. Considerada antagonista da GloboNews e emissora “confiável” caiu em desgraça depois de entrevistar Regina Duarte. Passou a merecer, dos radicais, a mesma alcunha que reservavam aos demais veículos. Agora, a aplicação é a mesma e a CNN virou #CNNlixo.
#fechadocombolsonaro: usado para designar apoio incondicional ao presidente. Não importa o que ele diga, faça ou fale, em que circunstância se envolva ou que acusações enfrente, quem adota a hashtag #fechadocombolsonaro idolatra, pura e simplesmente, Jair Bolsonaro.
Cloroquina ou Hidroxicloroquina: o mesmo, em bolsonarês, que o Santo Graal dos cristãos. Como o sangue de Jesus, teria o poder de “curar” os doentes de covid-19. Diante do insucesso verificado no tratamento dos pacientes, caiu em desuso, mas ainda é utilizado por extremistas.
Comunista: um dos mais versáteis adjetivos do dialeto bolsonarês. Pode ser aplicado em quase qualquer circunstância. Originalmente, em português, designa o partidário ou simpatizante do comunismo, sistema político de esquerda que propõe uma sociedade sem divisão de classes, com o Estado controlando os meios de produção, e que nunca deu certo em nenhum lugar do mundo. É utilizado especialmente pelos bolsominions, grupo mais radical do bolsonarismo, para desqualificar opositores, adversários ou qualquer um de quem o presidente não goste. Ex: Dória é comunista (ainda que o governador paulista seja o mais clássico exemplo de direita, defensor do liberalismo econômico e da atividade empresarial); Mandetta é comunista (o ex-ministro da Saúde é integrante do DEM, partido que representa a Direita no Brasil); Moro é comunista (o ex-ministro da Justiça nunca demonstrou qualquer admiração específica por este sistema de governo). Outros exemplos: a rede Globo, além de lixo, é também definida como comunista em bolsonarês, o que não faz o menor sentido em nenhum outro idioma, já que emissoras de televisão privadas são um dos maiores símbolos das democracias liberais.
Coronavírus: também conhecido como vírus chinês. No idioma presidencial, não é uma doença provocada por um vírus, mas um plano estratégico perverso da China para matar milhões de pessoas e dominar o mundo.
Deus: o pai de Jair Messias.
E daí?: Interjeição provocativa utilizada para tirar do sério o interlocutor. Ex: Morreram dez mil pessoas. E daí?
Golpista: toda pessoa que defende o afastamento do presidente, ainda que pelas vias democráticas, é um golpista. É o único caso de vocábulo “roubado” do Lulapetismo, outro dialeto muito em voga no Brasil na primeira década deste século.
Gripezinha: adjetivo utilizado para estabelecer a gravidade de uma doença x tamanho da crise econômica do país. Não varia nem admite intensidade. Assim, uma pandemia global que contamine milhões de pessoas e mate centenas de milhares pode ser definida como uma “gripezinha”. Nota do tradutor: há uma exceção. Quando a gripezinha atinge e mata alguém próximo do bolsonarista, vira uma tragédia. Mas, neste caso, o próprio bolsonarista será considerado traidor (ver mais nesta página).
Infiltrado: designa o bolsonarista flagrado agredindo, verbal ou fisicamente, alguém. Assim, um discípulo que se envolva em uma confusão pode ser um patriota (se escapar ileso) ou infiltrado (se for pego em flagrante ou identificado).
Mentira: substantivo feminino que designa tudo que desagrada ao presidente. Ex: Carlos Bolsonaro comanda o gabinete do ódio. Mentira; O Brasil menosprezou o coronavírus. Mentira; A Inglaterra está fazendo quarentena. Mentira.
Mito: designação exclusiva do presidente Jair Bolsonaro, aparentemente inspirada na ditadura comunista norte-coreana, que classificava seu fundador como “Grande Líder”. Por aqui, o dialeto resumiu a idolatria num único substantivo.
Patriota: o antônimo de comunista. Qualquer um que apoie o presidente é um patriota. Pode ser miliciano do Rio de Janeiro, membro do Centrão, envolvido no esquema do mensalão, pouco importa o passado. Se apoia o presidente Jair Bolsonaro, automaticamente se transforma em patriota.
Socialismo: ideologia de esquerda associada ao demônio. Ver também comunista nesta página.
Tá de brincadeira: interjeição, normalmente usada na forma interrogativa, que é usada em tom provocativo para questionar uma afirmação, ainda que irrefutável. Ex: O mundo enfrenta uma pandemia global. Tá de brincadeira?; Milhares de brasileiros morrem de coronavírus. Tá de brincadeira?
Talkey: termo em bolsonarês usado para encerrar abruptamente uma conversa. Ex: Eu não vou falar mais sobre as denúncias do sr. Sérgio Moro, talkey?
Traidor: adjetivo usado para designar qualquer pessoa que um dia concordou com o presidente, mas, em algum momento, passou a discordar. Ex: Moro traidor; Maia traidor; Mandetta traidor; Doria traidor.
Vagabundo: adjetivo associado a pessoas que discordam do presidente. Se um ministro do Supremo Tribunal Federal sentencia em sentido contrário aos interesses de Jair Bolsonaro, ele é vagabundo. Se um professor defende a quarentena, ele é vagabundo (neste caso, costuma ser associado também com comunista). Se a imprensa publica notícias que expõe problemas do governo, além de lixo é comunista e também vagabunda.
Valores conservadores e cristãos: designa o conjunto de crenças do bolsonarismo, não necessariamente conservadores e cristão. Ex: um militante bolsominion pode escrever em seus perfis citações bíblicas ao mesmo tempo em que apoia o porte de armas e a execução sumária de todos os comunistas, ainda que não tenham cometido crimes – e nem sejam comunistas. Mesmo assim, é alguém que em bolsonarês compartilha valores conservadores e cristãos.
Verdade: substantivo feminino que designa tudo aquilo que seja compatível com o que o presidente diz ou pensa. Se for diferente, não é verdade (ver o verbete Mentira mais acima).
PS: contém spoiler do filme A Chegada. No final do filme, a linguista, depois de estabelecer comunicação com os alienígenas, descobre enfim o que era o presente que eles pretendiam dar aos humanos: a própria linguagem. Quem a domina, consegue quebrar a barreira do passado, presente e futuro, o que abre infinitas possibilidades para a própria espécie. Dante do que tenho visto do pensamento bolsonariano, tenho lá minhas dúvidas de que alguma coisa de boa derive do “aprendizado” deste dialeto.
Corrêa Neves Júnior, jornalista e vereador em Franca
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