“Há, verdadeiramente, duas coisas diferentes: saber crer e crer que se sabe. A ciência consiste em saber; em crer que se sabe está a ignorância”
Hipócrates, filósofo grego e “pai” da medicina
Não conheço ninguém que, diante de um médico, qualquer que seja a razão que o tenha levado até o profissional de saúde, receba um diagnóstico e rejeite peremptoriamente o que está ouvindo. Muito menos que comece a xingar o médico de mentiroso, de conspirador, de estar a serviço de alguma potência estrangeira ou de algum político a quem interessaria, sabe-se lá por qual razão, fazer o paciente acreditar que está doente. Há, obviamente, os cinco estágios do luto – os passos que percorrem os pacientes de doenças terminais, começando da negação e terminando na aceitação. Mas a negação é íntima, interior, jamais contra o médico, o enfermeiro ou o laboratório que fez os exames.
Também existem os pacientes que desconfiam do diagnóstico e procuram outro profissional – normalmente, de mesma ou melhor reputação do que sua primeira opção. Mas, da mesma forma, admite-se que pode ter acontecido um erro do médico, uma falha de atendimento, uma interpretação equivocada dos sintomas. Nunca, jamais, parte-se do princípio de que um bom médico, com carreira estabelecida, reputação ilibada e histórico de sucesso, simplesmente resolva “inventar” uma doença para atormentar o paciente, impedi-lo de trabalhar, fazê-lo mudar hábitos e prioridades. E se mais de um médico confirma o mesmo diagnóstico, difícil acreditar que alguém simplesmente iria dizer que não acredita.
Penso em alguém sentado diante de um oncologista e recebendo um diagnóstico de câncer. Ou uma pessoa qualquer ouvindo de um endocrinologista que tem diabetes. Pensar que qualquer um deles simplesmente ignoraria o que os médicos acabaram de dizer e continuariam a seguir com suas vidas como se nada tivesse acontecido beira o absurdo. Neste cenário mais que improvável, o paciente de câncer não faria quimioterapia, radioterapia, não tomaria morfina, não procuraria entender sua expectativa de vida nem, fosse o caso terminal, tomaria qualquer atitude para preparar sua família para quando o fim chegasse. Na hipótese de um diabético ele sairia do consultório direto para o supermercado, compraria caixas de chocolate, tomaria sorvete, e mesmo diante do agravamento dos sintomas, da cegueira iminente, da impotência indisfarçável, rejeitaria qualquer restrição alimentar, ignoraria a necessidade de tomar insulina, e continuaria a viver como se a doença fosse delírio do médico.
Ninguém agiria assim diante de um diagnóstico individual, por mais que o que ouvisse de um médico fosse difícil de aceitar. Mas, diante da pandemia de coronavírus, é exatamente desta forma que parte considerável da população tem agido. Não importa quantos médicos sérios e competentes digam que o problema é sério, nem quantos cientistas repitam que estamos diante de um desafio sem precedentes nas últimas décadas. Tanto faz que mandatários de todo o mundo, sejam eles de direita ou de esquerda, repitam que é preciso manter o isolamento social. É indiferente que os principais líderes religiosos, de todos os credos, inclusive o Papa, defendam as medidas de distanciamento.
Para boa parte dos brasileiros, o coronavírus é uma gripezinha que não contagia ninguém, não é perigosa, não precisa ser enfrentada com medidas duras e não passa de uma conspiração absurda para tentar prejudicar o presidente Jair Bolsonaro. “É tudo política”, repete-se, à exaustação, como se todos que defendem a quarentena fossem canalhas e a virtude estivesse apenas entre os que promovem a desobediência. Difícil pensar num paradoxo maior.
Como se estivéssemos de volta à obscurantista Idade Média, não importa a lógica do argumento nem o quanto o vírus se espalhe mundo afora, sempre há uma negação que se converte em mantra repetido à exaustação. É uma verdadeira máquina de criar desculpas do bolsonarismo, operando em velocidade máxima.
No começo, quando ainda em fevereiro se anunciava a iminente chegada da pandemia ao Brasil, diziam os apoiadores de Jair que era coisa de chinês, que nada tinha a ver com a gente. Por estes tempos, europeus pensavam a mesma coisa, assim como americanos, cada qual acreditando que seu quadrado estava seguro. O vírus chegou então na Itália, na Espanha, na França, não tardou a invadir a Inglaterra e o resto da Europa. O discurso negacionista se adaptou. O vírus continuava a ser um problema chinês, mas as mortes na Itália só aconteciam porque ali tem velhos demais. Quando começou a matar muita gente nos outros países europeus, o discurso sofreu nova recauchutagem. A “questão” passou a ser o frio, como se o coronavírus fossem inofensivos nos trópicos. E, ainda assim, só seria perigoso em países onde, além do frio, houvesse também muitos velhos. Para justificar seu ponto de vista, os negacionistas apontavam a Rússia, onde a vida seguia normal, e o Japão, onde as taxas de contágio eram baixas.
O vírus então chegou aos Estados Unidos, ao Canadá, ao México. O presidente Trump ainda tentou manter a tranquilidade, mas por ali a luz se fez mais rápido. Diante dos casos que começavam a se multiplicar e da opinião de especialistas, Trump passou a recomendar, diariamente, que as pessoas ficassem em casa. Que mantivessem isolamento social. Liberou um megapacote de ajuda financeira, o maior da história americana. Apoiou os governadores, especialmente o de Nova Iorque, que viam os seus sistemas de saúde caminhar rapidamente para o colapso.
E por aqui? Mudou o discurso de novo. Trump desapareceu das redes bolsonaristas. Acharam a cloroquina. E, com ela, o presidente brasileiro passou a bradar que tinha a “solução” para o mundo. Bastava dar o remédio em larga escala que o problema estaria resolvido. Se os médicos e especialistas mais renomados do planeta, inclusive os especialistas do Ministério da Saúde do próprio governo, dizem que ele é tóxico, que não pode ser adotado em larga escala, que só pode ser administrado para certos tipos de paciente internados e sob orientação médica, o discurso negacionista “encontra” a opinião de algum obscuro médico para refutar a opinião majoritária e garantir que cloroquina é a solução. Mas por que os Estados Unidos, a Itália, a Espanha, a França e o Japão não usam o medicamento em larga escala para salvar milhares de vidas? Como é um argumento irrefutável, os negacionistas simplesmente o ignoram, como fizeram com Trump. Concentram-se nas palavras de Bolsonaro e na opinião de um par de médicos. Que se danem 99% dos especialistas pensarem diferente. Pouco importa que apenas 3 de mais de 65 estudos sobre cloroquina no mundo estejam concluídos e, ainda assim, serem inconclusivos. Melhor repetir que existe um remédio (sic) e que ele “cura” o problema. Ainda que isso seja, claramente, uma enorme mentira.
Finalmente, o vírus chegou aqui. Mais ou menos ao mesmo tempo, atingiu também a Rússia, a Índia e o Japão. Todos suspenderam voos, adotaram a quarentena, determinaram o isolamento social. Mas para os negacionistas brasileiros, tudo é bobagem. Só acontece no resto do mundo, e não por aqui. Os cadáveres nos outros países nunca vão se repetir no Brasil, mesmo porque somos muito mais “higiênicos” e isso, por si só, evita o vírus (sim, ouvi essa hoje).
As quarentenas da maior parte dos Estados brasileiros é só “jogo político”, uma orquestração capitaneada por Doria, em São Paulo, Witzel, no Rio, e Caiado, em Goiás, para prejudicar o presidente. Doria virou comunista, Witzel, louco, e Caiado, traidor. Além disso, os governadores são todos incompetentes. Os prefeitos também. Os senadores, deputados federais e estaduais e vereadores, idem. Os cientistas e médicos, a mesma coisa, assim como os enfermeiros, biólogos e jornalistas. Ninguém presta, a não ser Jair Bolsonaro. Ninguém corre risco no Brasil, só o resto do mundo. Para os negacionistas, a hora é de romper a quarentena, ignorar os médicos, esquecer o coronavírus e voltar a trabalhar sem grandes cuidados e restrições, como se isso, por si só, fizesse o problema desaparecer e a vida voltar ao normal. E como se a economia do mundo inteiro não estivesse em frangalhos. E como se tudo fosse voltar ao normal apenas porque o presidente brasileiro assim determina.
O bolsonarismo surgiu como um movimento político, mas parece, cada vez mais, uma seita. No lugar de valores e princípios, tem dogmas. Onde deveria haver argumentos e contrapontos, emerge a violência e o xingamento. De onde sempre se espera a luz, surgem as trevas. Os seres humanos, não é de hoje, costumam trocar a força da realidade pela conveniência de suas crenças sempre que as últimas lhes parecem mais confortáveis. Provoca alívio imediato, mas não resolve coisa nenhuma. Mais dia, menos dia, a realidade se impõe. Que, Deus nos ajude, chegue com o menor custo de vidas possível.
Corrêa Neves Júnior, jornalista e vereador em Franca
email - junior@gcn.net.br